Ecomuseu Urbano: incursão existencial de um pensamento infinito em percurso | Urban Ecomuseum: existential incursion of an infinite thought in process
DOI: 10.5281/zenodo.10644540 | PDF | Educazione Aperta 15/2024
The article is about the Urban Ecomuseum, a contemporary art process initiated in 2021 in the city of Porto Alegre, Brazil. This experience in the field of art reflects about city and ecology, weaving relationships with cultural and natural patrimony and urban transformation. In the writing, one of the axes that make up the experience of the Urban Ecomuseum is presented, starting with the planting of an individual tree, which triggers the beginning of a series of plantings in public squares, constituting an open-air pathway in which people can look at this living collection at the same time that they are encouraged, when walking through the city, to look at the landscape that continually transforms itself.
Keywords: contemporary art; urban ecological habitat; cultural patrimony; participatory artistic practices
Introdução
O dinamismo dos espaços urbanos produz rápidas transformações; os processos de urbanização ocorridos nesses espaços transformam os usos e formas de apropriação alterando os modos de produção de cidade e experiência urbana no cotidiano. As mudanças populacionais e as realidades físicas, sobretudo as implicadas e sob pressão dos mercados imobiliários, desfazem os vínculos afetivos dos habitantes locais com seu território, produzindo cidades genéricas desprovidas de enraizamento e consciência identitária que dificultam a atribuição de significado aos lugares e patrimônios culturais. Neste estudo, apresentamos uma metodologia criada em meio a práticas sistemáticas de caminhadas e pensamento, tentando subverter a hegemonia que desconsidera habitats arbóreos urbanos como patrimônio cultural, propondo uma reflexão de baixo para cima sobre o que é patrimônio ou “patrimoniável” para outras formas de pensar museu, memória, vínculo e patrimônio cultural em uma cidade do sul global na contemporaneidade. Em Ecomuseu Urbano abordamos o valor do caminhar como prática estético-crítica (Careri, 2005) entendendo o(s) patrimônio(s) ambiental urbano como locais de observatórios culturais utilizando práticas artísticas participativas como modo de observação-ação. As experiências de deslocamento sistemáticas, os registos audiovisuais obtidos em tais práticas, se convertem em diários de campo e constituem um banco de dados empíricos, submetido a uma análise multimetodológica situada, para determinar o patrimônio cultural em distintos estágios de preservação e conservação dos habitats vegetais arbóreos em coexistência humana na região central da cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul no Brasil. O resultado processual aberto e poroso considera a metodologia de pesquisa baseada nas artes de caráter participativo. As informações obtidas, resultantes de processos abertos e contínuos, serão compartilhadas em uma página web, estabelecendo o campo compartilhável do processo de co-investigação e co-criação de observatórios urbanos para serem publicizados na forma de processos educativos e de mediação eco social, vinculados a atividades artísticas, sendo também, a base de um documentário. Podemos esboçar, a modo de conclusão em processo, que o patrimoniável, ou seja, o devir patrimônio é a cultura viva que se move ao nível do solo e está em contínuo processo de transformação e reconfiguração. Este estudo oferece uma visão crítica das práticas ecológicas, culturais e de planejamento urbano e introduz um conceito matizado de Ecomuseu Urbano como patrimônio cultural mais condizente com a realidade do habitat na cidade na contemporaneidade.
Incursão, do latim incursio, “ato de adentrar”
No subsolo, as raízes de uma árvore de frequência sonora silenciosa aos nossos ouvidos e imperceptíveis aos nossos olhos, tomadas pela lentidão, em abundante terra, ganham movimento. De um grito e grunhidos às primeiras palavras, da flexibilidade e do engatinhar aos passos iniciais, o ser se movimenta vagarosamente em direção ao pensamento e à linguagem.
Enquanto as radículas há 1200 milhões de anos vivem na sombra absorvendo nutrientes, o bicho que é dado à luz se questiona no tocante à existência e, rumo ao pensamento, uma inquietação brota acerca da vida. “Viver parece-me um erro metafísico da matéria” (Pessoa, 1982, p. 128). Do nomadismo ao habitar e cultivar um solo, o ser humano pensa sobre sua(s) história(s). Coleta objetos e memórias. Guarda. Constrói em forma de narrativa que preserva, e também esquece, apaga. Algo que transcenda o seu tempo de vida e sirva como herança para os que continuam ou que ainda não existem. Esgota o solo ao erigir monumentos que o glorificam. As radículas seguem.
Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o que significa ‘ver as trevas’, ‘perceber o escuro’? (Agamben, 2009, p. 62).
A incursão existencial Ecomuseu Urbano é uma experiência que se iniciou em 2021 a partir de práticas participativas que articulam arte contemporânea, cidade e ecologia proposta por nós, Cláudia Zanatta e Vado Vergara. Oriundos de uma formação ligada à arte, biologia e audiovisual, viemos trabalhando em uma parceria que busca estabelecer diálogos entre o fazer artístico e outras áreas do conhecimento. Essa experiência de arte urbana se constitui de ações abertas ao participativo que se manifestam em instalações, plantios, entre outras atividades que ocorrem em espaços a céu aberto e institucionais, sejam eles públicos ou privados. Na escrita deste artigo abordaremos um dos eixos que compõem o Ecomuseu Urbano: o plantio de espécies arbóreas nas praças do Centro Histórico de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Por meio destes plantios é gerado um percurso que se desenvolve no caminho entre uma praça e outra.
As árvores são seres vivos que, ao se relacionarem entre si, com suas distâncias e proximidades, constituem uma espécie de comunidade. Nesta comunidade que se estabelece, propusemos a criação de um percurso feito de muitas possibilidades de caminhos, em que participantes são convidados a escolher a própria rota a seguir. Em um perímetro imaginário, mediante a caminhada entre a comunidade de indivíduos arbóreos, o Ecomuseu Urbano, traz como possibilidade o deslocamento do olhar para a paisagem de uma cidade que continuamente se modifica.
De onde surge o Ecomuseu Urbano? Da supressão. Da percepção durante as caminhadas que realizamos por Porto Alegre de um contínuo aumento na supressão completa ou parcial (poda) de indivíduos (sujeitos) arbóreos. Tal questão nos chamou a atenção, pois se pode considerar que Porto Alegre possui uma legislação que protege sua vegetação urbana. No que se refere às normativas relacionadas à temática ambiental, no contexto sulamericano tivemos um avanço em 2008 a partir de uma atualização da Constituição equatoriana, pois nela os indivíduos arbóreos passaram a ser sujeitos de direitos. No artigo 71 da referida Constituição, lê-se:
La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos (Constitución de la República del Ecuador, 2008, art. 71).
Muito recentemente, a legislação brasileira também tem criado dispositivos jurídicos que reconhecem os seres não humanos como sujeitos a serem protegidos, como no caso de Rondônia, Brasil, em que o rio Laje Guajará-Mirim, passou a ser considerado um “ente vivo, indivíduo dotado de direitos” (Folha de São Paulo, 23 de junho de 2023). No que tange à legislação de Porto Alegre, ela é fruto da luta ambiental iniciada nos anos 70 no Rio Grande do Sul, tendo como principal expoente o engenheiro agrônomo José Lutzenberger, um dos fundadores da Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente. Considerando o histórico das questões ambientais em Porto Alegre e a evolução considerável da legislação nos últimos anos em diversos países (Equador, Bolívia), o Ecomuseu Urbano vem pensando os indivíduos arbóreos como uma comunidade não isolada da humana, dotados de direitos.
Do caminhar sobre um solo em que habitam tempos sobrepostos e embaralhados e do olhar fixo na cidade, plantio, supressão e poda, à cogitação de que entes vivos possam ser dotados de direitos e memória, brotam as sementes que colocam o pensamento em movimento. No terreno do não-saber, raízes se espalham, dúvidas se apresentam. Concomitante à sua expansão na sombra, um indivíduo arbóreo cresce acima do solo, ao lado de outro que é suprimido dentro do contexto urbano, pautado por relações que se dão em uma praça. Entre o apagamento de uma memória ao mesmo tempo em que se olha para o que vem sendo colocado em seu lugar, o contemporâneo é pensado.
Caminhada e Pensamento (Primeiros Passos)
Este abandonar do “modelo temporal de passagem de testemunho, de sucessão linear” é fundamental. Quem está a pensar neste preciso momento, neste dia, ano e hora, faz uma ação que pode começar por qualquer começo, isto é: uma das marcas de ser contemporâneo é a possibilidade de definir começos. E o começo individual pode não estar no mesmo sítio do começo coletivo. Fora do âmbito histórico, a partir do momento em que se pode ter no mesmo espaço físico, lado a lado, um livro do século X a. C. e um livro escrito em 2005, a partir do momento em que uma pessoa pode, no intervalo de algumas horas, ler passagens de um de outro livro, isto é, em duas horas, pode saltar 30 séculos (e este saltar é um unir), a partir do momento em que tal sucede, a cronologia dos pensamentos torna-se secundária (Tavares, 2021, p. 32).
As decisões tomadas nas ações, do plantio a outras experiências poéticas do Ecomuseu Urbano e que vão se plasmar criativamente em diferentes linguagens, partem de experiências pregressas que se atualizam quando nos deparamos com o não-sabido. Intuição e acaso também fazem parte desse processo criativo que abarca razão e desconhecido; pensamento, movimento entre o que se conhece e o que não se sabe. “O não-saber desnuda. Essa proposição é o ponto culminante, mas deve ser entendida assim: desnuda, portanto, eu vejo o que o saber ocultava até então, mas se eu vejo eu sei. De fato, eu sei, mas o que eu soube, o não-saber o desnuda novamente” (Bataille, 2020, p. 66). O pensamento é semente de novos caminhos a cada reflexão que se apresenta ou que nos escapa, algo que surge do inesperado, passível de ser reconsiderado ao alterar o curso do já cogitado como abertura à noite que escurece.
Nesta experiência, Ecomuseu Urbano, caminhada e pensamento mutuamente se nutrem. Nela, duas pessoas perambulam juntas por uma cidade que conhecem e desconhecem, e que, por diferentes rotas, acabam por estabelecer caminhos que são mais frequentes. Um dos caminhos cotidianos dessa rota abarca o encontro com o rio, com cardeais, pombas, sabiás e pica-paus, com pássaros mortos no asfalto que convivem com bicicletas e patinetes elétricos patrocinados por um banco privado. Encontro com a casa de um joão de barro construída em cima de um suporte para lâmpada de led que ilumina a via pública, com o som de música ao vivo em bares que compõem com a frequência sonora ruidosa de lanchas e de jet skis recém chegados na margem, contraponto ao oscilar silencioso de barquinhos de pescadores ausentes. Encontro com árvores cimentadas em meio ao concreto de um estacionamento que transforma chão batido em asfalto para a construção de um parque em uma parceria público/privada. Do outro lado do rio, avistamos ilhas e outras cidades. Nosso corpo, em caminhada, movimenta o pensamento. Conversas infinitas (Blanchot, 2001) surgem e palavras desgovernadas atravessam o falar e o pensar do outro colocando em xeque o sabido. Assim como novos livros colocam em dúvida o que já se conhece, ou gestam mundos a partir de livros já existentes, de tempo em tempos, sentamos para escrever e organizar o que o vento leva.
Não somos daqueles que só em meio aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos – é nosso hábito pensar ao ar livre, andando, saltando, subindo, dançando, preferivelmente em montes solitários ou próximos ao mar. Onde mesmo as trilhas se tornam pensativas (Nietzsche apud Gros, 2021, p. 26).
Ao longo dos últimos anos, caminhada e pensamento germinaram inquietações que vem se organizando dentro de um sistema aberto de dúvidas. Um sistema aberto é aquele que realiza trocas, a partir de sua incompletude. Segundo Paulo Freire, somos seres inacabados, sempre em transformação (Freire, 2005). Para Freire também o mundo, como uma totalidade, é um processo ainda se fazendo, acontecendo em sua permanente incompletude e criação (Gadotti, 1996). Gostamos de pensar que esses processos são infinitos e abertos como o próprio crescimento e renovação contínuos das árvores recém plantadas.
No pensamento, o que permanece é o caminho. E os caminhos do pensamento guardam consigo o mistério de podermos caminhá-los para frente e para trás, trazem até o mistério de o caminho para traz nos levar à frente (Heidegger, 2003, p. 81).
A primeira árvore
A partir do plantio e, no decorrer do tempo, da manutenção de árvore nativa do Rio Grande do Sul, Caneleira ferrugem[1], realizada em uma praça do Centro Histórico, chamada Brigadeiro Sampaio, demos início a algo que não conseguíamos compreender ainda naquele momento como Ecomuseu Urbano. O plantio da Caneleira ferrugem fez parte de uma exposição coletiva de arte contemporânea denominada Museu Baldio[2], ocorrida em 2021. Nesta primeira ação conhecemos Marivane Anhanha Rogério que se apresentou como prefeita da Praça Brigadeiro Sampaio[3]. Mediante esta aproximação passamos a estabelecer um diálogo a respeito da autorização de plantio que incluía os protocolos para sua realização e da manutenção da espécie arbórea prevendo seis meses de cuidados diários, da rega à adubação. Tais orientações vieram a partir de contato prévio com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS). A Caneleira ferrugem, por ser uma árvore nativa, corresponde a uma avifauna local e, no decurso do tempo, muitas dinâmicas interespecíficas podem surgir e se desenvolver relacionadas à sua presença na praça. Neste meio urbano, entendemos seu plantio como ação artística um ato simbólico significativo, e dele surge o desejo de darmos continuidade às ações.
Foi com as caminhadas e encontros cotidianos necessários para a manutenção da Caneleira ferrugem, que o Ecomuseu Urbano começou a brotar como ação poética.
Percurso e Patrimônio
Júlio Mesquita, Brigadeiro Sampaio, Alfândega, Matriz e Otávio Rocha são algumas das praças do centro da cidade de Porto Alegre nas quais já plantamos mudas ou nas quais estamos fazendo tratativas para a realização do plantio. A proposta envolve o plantio de espécies arbóreas nas vinte e seis praças do Centro Histórico. São essas árvores que vão estabelecer um percurso em trama, oportunizando que rotas sejam criadas pelas pessoas ao visitarem as diferentes plantas. A ideia que germinamos neste percurso a céu aberto é uma espécie de museu descentralizado, cujo acervo vivo está em contínuo crescimento e transformação.
Porto Alegre é conhecida como a cidade das árvores (Sanchotene et al. apud Tomasini e Cassol, 2021) e a vegetação urbana faz parte da percepção que os habitantes têm desta metrópole de mais de 1,5 milhão de habitantes. A museóloga Kátia Almeida nos dá um pequeno relato a respeito da sensação provocada pela presença da vegetação se transformando mediante seus ciclos em Porto Alegre.
O chão dos parques, por vezes, fica coberto com verdadeiros tapetes de flores caídas, proporcionando um clima de alegria e beleza para as pessoas. Sendo nativas, exóticas ou invasoras, as árvores dividem conosco o espaço urbano, nos dando sombra, flores e frutos. Elas são fundamentais, um patrimônio vivo e importantíssimo em nossa cidade. Abrigam a fauna, dão sombra diminuindo a temperatura, drenam água da chuva para o subsolo evitando enxurradas, aumentam a umidade relativa do ar e diminuem a poluição sonora contribuindo para qualidade da vida urbana. Fazem parte do cotidiano de muitas gerações e pertencem ao imaginário de muitas pessoas (Almeida, 2018, p. 9).
Ao chamar a atenção para a presença das árvores como parte do cotidiano e do imaginário de diferentes gerações, Almeida reforça o entendimento dos indivíduos arbóreos como “patrimônio vivo”. Também nós, ao caminharmos pela cidade, orla do rio e neste percurso formado pelas árvores plantadas, observamos os vários microclimas que impactam na mudança da percepção sensorial associados a diferentes conjuntos de indivíduos arbóreos que formam uma comunidade. A partir da constituição de comunidades arbóreas pelos plantios feitos pelo Ecomuseu Urbano e do conjunto de ações que deles decorrem, podemos repensar a ideia de patrimônio. Segundo Simone Scifoni:
O enfoque da paisagem cultural permite, assim, superar um tratamento compartimentado entre o patrimônio natural e cultural, mas também entre o material e imaterial, entendendo-os como um conjunto único, um todo vivo e dinâmico. Permite compreender as práticas culturais em estreita interdependência com as materialidades produzidas e com as formas e dinâmicas da natureza (Scifoni apud Tomasini e Cassol, 2016).
As árvores de Porto Alegre, a partir de ações ambientais continuadas dos ecologistas ao longo de décadas, passaram a ser entendidas como parte do patrimônio natural e cultural da cidade. Em 1976 é criado um decreto que tomba como patrimônio oitenta e nove indivíduos arbóreos, indicando tais espécimes como “patrimônio inalienável” do município (Decreto n. 5482, de 8 de abril de 1976).
Conceitos como patrimônio, museu e acervo são vitais em relação à preservação da memória e da experiência humanas. O entendimento que o Ecomuseu Urbano tem da noção museal não busca ressignificar estes importantes conceitos ou lógicas habitualmente usadas no que tange à preservação, e sim, tecer uma outra possibilidade de experimentar o patrimônio, patrimônio vivo este que está sob a ação do tempo. E que, à parte de nossos desejos e cuidados relativos ao plantio no espaço urbano, compõe com a complexidade das dinâmicas específicas de cada local, seguindo a se desenvolver nos ciclos inerentes de cada organismo material ou imaterial. Observamos uma dinâmica estabelecida atualmente na cidade, em que, à medida em que árvores são suprimidas ou podadas, diversas outras são plantadas como contrapartida. Nosso desejo é plantar sem repor algo suprimido, porque não há contrapartida para um indivíduo que teve seu ciclo vital interrompido. O antropólogo Viveiros de Castro trouxe uma fala a respeito da tragédia do incêndio que destruiu o acervo do Museu Nacional, no RJ, em 2018, que nos parece estar em sintonia com a impossibilidade de reparação. “A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio” (Castro, 2018, s.p.). Assim como Castro lembra que a destruição de um museu é um “deserto no tempo, é destruir a memória, destruir a História” (ibidem), o percurso pode nos relembrar do que nos antecede, a partir de caminhadas tramadas que continuarão no tempo, que dependem e independem de nossa ação ou intenção. Dentro de um planejamento de cidade que se altera velozmente, o Ecomuseu Urbano, pode possibilitar que os habitantes rememorem ou até mesmo cogitem, a partir da vivência do percurso que conecta os plantios, um outro modelo de urbanização. O percurso do Ecomuseu Urbano possibilita olhar para as árvores plantadas que constituem um acervo vivo, mas também, nas caminhadas do percurso podem ser observadas as constantes supressões de espécies, apagamento da memória. Na paisagem da cidade que se modifica, a árvore plantada segue a acontecer no tempo, assim como a memória de sua supressão permanece em um toco de madeira. O Ecomuseu Urbano não é preservado, ele vive. Ele morre. Ele se renova. Por si só. Transcende o tempo de vida do ser e independe da mão humana. Por mais 1200 milhões de anos.
Notas
[1] O plantio contou com a parceria da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade e do Viveiro Municipal de Porto Alegre.
[2] A exposição Museu Baldio ocorreu na Casa de Cultura Mário Quintana, em junho de 2021, em Porto Alegre, RS, com curadoria de Marcelo Chardosin.
[3] Nesse momento a prefeita se integra à ação e passamos a estabelecer uma parceria de outras ações de plantio na praça. A partir dessa primeira ação foram realizados outros plantios em conjunto com moradores vinculados à Associação dos Moradores do Centro Histórico, com prefeitas/os das praças da zona central da cidade.
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Os autores
Cláudia Vicari Zanatta é artista e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atua no Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Possui graduação em Artes Visuais pela UFRGS (2000), graduação em Ciências Biológicas pela UFRGS (1994), mestrado em Artes Visuais pela UFRGS (2003) e doutorado em Arte Público y Poéticas Visuais pela Universidad Politécnica de Valencia (Espanha) em co-tutela com a UFRGS. É líder do Grupo de Pesquisa “Arte pública participativa: articulação entre poética e cidadania”, onde desenvolve a pesquisa “Poéticas da Participação”. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.
Lilian Amaral é artista visual, pesquisadora e curadora independente. Pós-Doutora com Bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Docente da Disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Visualidade: Cartografias e Territórios”. Pós-Doutorado em Arte, Ciência e Tecnologia pela Universidade de São Paulo (UNESP). Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da UNESP e pela Universidade Complutense de Madrid (2010). Mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (2000). Graduada em Licenciatura em Artes pela Fundação Armando Álvares Penteado (1986). Pesquisadora do Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergência entre Arte, Ciência e Tecnologia da UNESP. Coordenadora da Linha de Pesquisa Arte e Media City.
Osvaldo (Vado) Vergara Borges é artista visual formado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre (2023) e doutorando em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS. Desenvolve pesquisa voltada à arte contemporânea e cidade e participa do Grupo de Pesquisa “Arte pública participativa: articulação entre poética e cidadania”, onde desenvolve a pesquisa “Poéticas da Participação”. Participou de exposições coletivas e individuais, seus trabalhos já foram premiados e circularam por mais de cinquenta festivais nacionais e internacionais, museus, galerias e mostras de cinema e vídeo arte. Em 2019, recebeu o prêmio “Lawrence Kasdan Award for Best Narrative Film”, (Oscar® Award Qualifying), no 57º Ann Arbor Film Festival, o festival mais antigo de filmes experimentais e de vanguarda da América do Norte. Recebeu também o prêmio de melhor direção no FestUni do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.