Educação Museal e experienciações afro-amazônicas com audiovisuais do Museu Surrupira (Belém, Brasil) | Museum Education and Afro-Amazonian Experiences with Audiovisuals from the Surrupira Museum (Belém, Brazil)

DOI: 10.5281/zenodo.14603511  | PDF

Educazione Aperta 17 / 2024

Resumo. Inicialmente, o artigo aborda as bases conceituais do Museu Virtual Surrupira de Encantarias Amazônicas, um projeto de extensão da Universidade Federal do Pará. Esse projeto se desenvolve a partir de uma metodologia de experimentação museal, que se aproxima das concepções da Museologia Social e busca desenvolver conhecimentos em Museologia Teórica. Logo, o artigo se aprofunda em aspectos da Educação Museal, utilizada para embasar suas ações desenvolvidas com aportes imagéticos. Entre estas ações, destaca-se o projeto Meu Terreiro Meu Museu, que busca compreender os terreiros – espaços sagrados das religiões afrodiaspóricas – como espaços museais. Tal projeto deu origem a dois documentários, os quais abordaram o Terreiro de Umbanda de Pai Pingo de Oxumaré e a casa Asé Nago Igboalama e Osun. A outra ação é caracterizada pelas oficinas Escritas e visualidades do imaginário e mitopoéticas da Cabocla Encantada Mariana, que deu origem a um terceiro documentário, o making off das atividades.

Palavras-chave: Culturas Afro-amazônicas, Museologia, Museologia Social, Educação Museal, Audiovisual.

 

Abstract. Initially, the article addresses the conceptual foundations of the Virtual Museum Surrupira de Encantarias Amazônicas, an extension project of the Federal University of Pará. This project is developed using a museum experimentation methodology that aligns closely with the concepts of Social Museology and aims to advance knowledge in Theoretical Museology. The article then delves into aspects of Museum Education, which underpin its actions developed with visual contributions. Among these actions, the Meu Terreiro Meu Museu project stands out for its effort to understand the terreiros – sacred spaces of Afrodiasporic religions – as museum spaces. This project led to the production of two documentaries, which explored the Terreiro of Umbanda of Pai Pingo de Oxumaré and the house Asé Nago Igboalama e Osun. Another initiative is characterized by the workshops Writings and Visualities of the Imaginary and Mythopoetics of Cabocla Encantada Mariana, which resulted in a third documentary capturing the behind-the-scenes activities.

Keywords: Afro-Amazonian Cultures, Museology, Social Museology, Museum Education, Audiovisual. 

Introdução

O Museu Virtual Surrupira de Encantarias Amazônicas (Museu Surrupira) é um projeto de extensão do curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), e vem se estruturado teoricamente desde 2016, no entanto, suas atividades práticas se iniciaram em 2021. Podemos dizer que o Museu Surrupira se configurou a partir da constituição de um exercício de experimentação museal, ao atuar com aspectos da musealidade[1] e da teoria museológica. Logo, é compreendido como uma proposta museal sem a pretensão de institucionalização efetiva, como de estrutura física complexa e abrigo de acervos materiais a serem gestados. Ressaltam-se, assim, suas diversas ações práticas junto as comunidades acadêmica, de terreiro e da cidade de Belém do Pará (Brasil) (Melo, Barroso e Rosi, 2021; Melo et al., 2023a).

Com base nesses aspectos, podemos compreender que o Museu Surrupira se consolidou a partir de uma proposta teórica de Museologia e se configura em um processo para produção de conhecimentos. Seu ponto motriz é o conceito de Museu Virtual, o qual auxilia a compreensão de seu objeto, os encantados afro-amazônicos. Tal aspecto se desdobra em ações para e com as comunidades de terreiros, ao ressaltar características de militância e combate aos racismos estrutural e religioso, além das questões de gênero. Esse processo museal considera os próprios conhecimentos e conteúdos produzidos a partir de suas ações como seus objetos, os quais se registram em suas redes sociais (Blogger, Instagram, Facebook e YouTube), principalmente fotografias e vídeos.

Sobre a concepção de racismo estrutural, consideramos que este não se encontra apenas vinculado a um indivíduo ou conjunto de indivíduos, configurando-se como uma questão social, a qual dever ser combatida, desestruturada. Sendo ele um elemento que integra as organizações econômicas e políticas em nossa sociedade, e por isso é capaz de promover formas de desigualdade e violência (Almeida, 2019). Também destacamos que a expressão “racismo religioso” se encontra atrelada a acepção anterior e se justapõe a expressão “intolerância religiosa”, mais comumente utilizada. Com isso, racismo religioso é utilizado como uma forma questionadora da concepção de um outro, detentor da acepção hegemônica, ser o julgador do que é tolerável ou não. Logo, reconhecer a existência do racismo religioso se configura como uma possibilidade de rompimento com estruturas sociais dominantes e assim auxilia combate dos preconceitos raciais. Em nosso caso, acepções culturais atreladas às origens negras e africanas destas religiões.

Destacamos que a terminologia “virtual” tem sua origem em virtuallis, termo derivado de virtus, que significa força ou potência. Nesse aspecto, costumamos identificar o termo pela concepção da semente ser virtualmente uma árvore, ao colocar o antagonismo do termo no atual ao invés do real, como aborda Pierre Lévy (2011). Essa compreensão amplia as perspectivas das acepções de Museu Virtual, ao indicar outras possibilidades, as quais não se encontram apenas vinculadas ao ciberespaço. Assim, o Museu Surrupira se compreende como virtual, na busca por dinâmicas transformativas e transitivas, como os processos do imaginário e das encantarias afro-amazônicas (Melo e Faulhaber, 2018).

A fim de entender as proposições conceptivas do Museu Surrupira, adentramos no objetivo deste artigo, que se consolida na discussão da sua compreensão de educação museal, diretamente atrelada as suas ações, ao discutir suas práticas, principalmente as vinculadas à produção de materiais imagéticos a partir das experiencias adquiridas no ano de 2022. Das quais destacamos a proposta do Meu Terreiro Meu Museu, realizada ao longo do ano e trabalhadas a partir de estudantes do curso de Museologia, os quais receberam bolsas[2] para execução das atividades. Tais ações resultaram na produção de três materiais audiovisuais, tratam-se de dois documentários de curta metragem e um de caráter ensaístico e making off das atividades produzidas durante a 16ª Primavera nos Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Cabe mencionar que as atividades educativas, realizadas durante esse evento, também serão debatidas pois, além de ter gerado um destes documentários, resumem bem a proposta educativa do Museu Surrupira, intituladas de oficinas integradas.

Um Museu das Mitopoéticas Amazônicas

Adotar mitopoéticas como objeto museal, para o Museu Surrupira, se configura como um fazer constituído por meio de atos de exercícios complexos, porém prazerosos, principalmente pela utopia de tentar musealizar algo dinâmico como o imaginário. Fluir, no sentido das dinâmicas dos ditos patrimônios intangíveis, resulta em um processo considerado demasiadamente distinto, pois adotamos os seguintes conceitos, a saber: a acepção fratrimonial e a busca por outras epistemes dizimadas pelo contexto da colonialidade do poder (Dussel, 2008; Grosfoguel, 2016), bem como o devaneio (conceito utilizado a partir de Bachelard, 1988) como metodologia de nossa proposta, onde real e realidades se sustentam nas possibilidades de imaginar, construir e interpretar possibilidades.

Nessa complexidade, devemos compreender que o ponto de partida do Museu Surrupira é a intenção de lidar com os encantados afro-amazônicos e, por isso, adota o nome de um, ou melhor, de uma família de encantados (Melo, Rosi e Barroso, 2021). Contudo, entendemos que este objetivo se desdobra em diversas outras questões, as quais emergem a partir das comunidades detentoras destes imaginários como questões sociais, políticas, raciais e de gênero. Por este fato, assumimos posturas de combate a todas as formas de discriminações sociais, principalmente o racismo religioso.

Ademais, devemos compreender que os encantados afro-amazônicos são compreendidos como seres que vivem em outro plano, as encantarias, no entanto, muitos viveram em nosso mundo. Principalmente pessoas, que por processos mágicos, encantes, passaram a habitar esse outro mundo, ao atravessar portais ou outros processos. Por isso, fala-se que os encantados não passaram pela experiência de morte (Ferretti, 2000). Contudo, Melo et al. (2021b) compreendem os Surrupiras como seres nativos da encantaria, pois não são mencionados seus processos de encantes, aparentemente, sempre estiveram por lá ou teriam se encantado em um tempo mítico, remoto.

Esse aspecto anterior encontra-se interligado às concepções de ancestralidade da diáspora negra africana, principalmente ao conceito de mortos-viventes presentes em concepções filosóficas africanas, conforme apresentado por Ramose (1999; 2002). Confundido com o conceito de ancestral, em contexto de tradução, seriam uma acepção de vida e de existência, apesar destes seres humanos não mais pertencerem ao nosso mundo, conseguiriam se comunicar e influenciá-lo. Configura-se, assim, em um sentido de imortalidade, semelhante ao estado de encantamento ou relações corpo e espiritualidade. Neste aspecto, Melo (2020) nos lembra que estes seres continuam ativos socialmente por se comunicarem por intermédio de oráculos e de incorporações, e serem capazes de manifestar suas vontades e desejos.

Devemos destacar que as acepções de encantados se encontram atreladas aos aspetos do imaginário local e se fazem fortemente presentes nas religiosidades afro-amazônicas. Dentre essas religiosidades, destacamos as pajelanças, designadas de cabocla ou rural, configuradas a partir de hibridismos culturais, principalmente das culturas indígenas e das diásporas africana. Desta maneira, se configuram como um mosaico que se aproxima muito das outras religiosidades afro-amazônicas, mas se distinguem por serem práticas mais solitária do que coletiva. Composta de um conjunto básico de crenças e práticas, com suas devidas variações, existem em todo território amazônico (Maués e Villacorta, 2001; Salles, 2008).

Outra vertente afrorreligiosa em questão é o Tambor de Mina, que abarca diversos segmentos religiosos como Mina Jeje, Mina Nagô, Mina Jeje-Nagô, Mina Vodunci, que tem a sua origem no Maranhão e se difundiu por toda a região amazônica. Nestes segmentos encontramos cultos de distintos panteões de entidades como os voduns Jeje, os orixás Nagô os senhores de toalha ou gentis/gentileiros e os caboclos (Ferretti, 2000; Prandi e Souza, 2004; Ferretti, 2013). Devemos destacar também o Terecô, conhecido como Tambor da Mata, Encantaria de Barba Soêra, religiosidade muito próxima a do Tambor de Mina, mas que se estabeleceu em cidades do interior do Maranhão (Ferretti, 200o; Centriny, 2015).

Também temos a Umbanda, que chegou na região por volta da década de 1930 e por seu carácter nacionalizante, muitos segmentos afrodiaspóricos se hibridizaram e com isso passaram a se autodenominar como tal (Luca, 2010; Melo et al., 2023b). Além destes segmentos, temos os candomblés, que adentraram o território amazônicos por volta da década de 1950 (Campelo, 2008). Com relação a este aspecto, Furuya (1986) indicou que o Tambor de Mina passou por um processo de reorganização, pois seus praticantes estavam se deslocando para se especializarem nos Candomblés, o que teria originado dois grupos distintos de mineiros, os que se nagoizaram, com feituras nos candomblés baianos, e os que se umbandizaram (Luca, 2010).

Destacamos que todos esses segmentos afro-amazônicos apresentados são extremamente complexos e diversificados. No caso deste trabalho, apresentamos aspetos de um terreiro de Tambor de Mina designado como Mina Jeje e Nagô e um autodenominado como Umbanda, com diversas concepções intercruzadas entre o Tambor de Mina e as Pajelanças. Assim como acepções mais genéricas, como a das miotopoéticas da encantada Cabocla Mariana e sua família, que perpassa por todos esses segmentos afrorreligiosos apontados.

Ainda devemos contextualizar, nesse complexo mitopoético, os “lugares de encantaria”, “locais considerados como potenciais para o surgimento destes portais [...] sendo eles normalmente lagos, matas, morros, dunas, rios, praias ou até mesmo algumas regiões (Melo, 2020 p.144). Lugares mágicos, normalmente de natureza exuberante e pouco habitados, correspondem a lugares ondes os portais podem se abrir para as cidades encantadas, como a Praia do Lençol no Maranhão ou o arquipélago do Marajó no Pará.

Por esse complexo, as bases do Museu Sururpira se configuram a partir dos estudos do imaginário (Castoriadis, 1982; Postic, 1993), ao caminhar contra o rompimento da dualidade entre real e imaginário, ocorrida com o desenvolvimento das concepções epistêmicas do monologismo cultural promovido pelo colonialismo. Esse processo colocou o devaneio, a fantasia, a loucura e, inclusive, a arte em segundo plano, como antagonistas da “Razão”. Nesse contexto, compreendemos o imaginário como forças criativas fundamentadas nas constituições identitárias no âmbito individual e coletivo.

O imaginário, pensado como instância educacional, alimenta e desencadeia “um novo padrão de conhecimento e de estímulo à confecção da poesia” (Silva, 2012 p. 2851). Ele é o local onde se processam afetos e pulsões, onde os desejos se expressam para auxiliar relações sociais, como superações de conflitos (Postic, 1993). Resumidamente, consideramos que o imaginário está diretamente associado ao que historicamente conhecemos como patrimônio ou ao conceito de fratrimônio, posto que precisam ser imaginados para serem compreendidos e valorizados:

um agente importante para que os indivíduos percebam a existência de distintas visões de mundo e entendam que existem distintas epistemes vigentes em seu universo existencial, como as acepções afrodiaspóricas (Melo, 2020 p. 151).

Para Durand (2002) uma “encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por outro aspecto de uma outra (p. 18).

Desta forma o imaginário revela-se como um lugar “entre saberes” [...] visto como um Museu por abrigar o conjunto de todas as imagens possíveis produzidas por um ser humano, [...] que se mantêm vivo por sistemas de regime simbólicos, como o religioso, correntes místicas, assim como as belas artes, a imprensa, a publicidade, dentre outras” (Melo, 2020 p. 152).

Assim, devemos contextualizar nossa propositiva de experimentação em plena consonância com a Museologia Social ou Sociomuseologia – compreendida como uma perspectiva museal estruturada a partir da década de 1960, aportada em diversos movimentos sociais, como o estudantil, negro, feminista e hippie. Também, não podemos deixar de destacar a forte influência da Mesa Redonda de Santiago do Chile, de 1972, e o Movimento Internacional da Nova Museologia, na década seguinte, os quais auxiliaram a emergência de novas formas de se pensar e fazer museus no mundo. Temos, neste processo histórico, o surgimento de diversos tipos de Museus de Território, como Ecomuseus e outras propostas que começavam a reivindicar outras formas de patrimônio, na busca de exaltar distintas relações sociais e, com isso, a estruturação e o avanço de museologias comunitárias, indígenas e quilombolas.

Logo, tais aspectos sustentaram, continuamente, um exercício propositivo e experimental de rompimento e libertação para com as estruturas colonialistas e imperialistas resguardadas pelos museus. Conforme pronunciou Hugues de Varine:

A partir de princípios do século XIX, o desenvolvimento dos museus no resto do mundo é um fenômeno puramente colonialista. Foram os países europeus que impuseram aos não europeus seu método de análise do fenômeno e patrimônio culturais; obrigaram as elites e os povos destes países a ver sua própria cultura com olhos europeus. Assim, os museus na maioria das nações são criações da etapa histórica colonialista (Varine-Bohan, 1979, p. 12).

Com isso, vamos de encontro à propositiva de Chagas e Gouveia (2014), pois afirmam que evidenciar a museologia como social é um processo afirmativo de compromissos social e ético, comprometido com o combate às injustiças, desigualdades sociais e melhorias referentes a qualidade de vida e dignidade humana. “Seria possível dizer que toda museologia é social, se toda museologia, sem distinção, estivesse comprometida do ponto de vista teórico e prático com as questões aqui apresentadas” (p. 17).

Portanto, é a partir dessa percepção prática que o Museu Surrupira defende a perspectiva dos fratrimônios e se compreende como agente transformador do social, direta ou indiretamente. Direciona, assim, aspectos educacionais, os quais buscam, antes de tudo, descolonizar nossas mentes e visões de mundo, moldadas fortemente pela colonialidade do poder. Buscamos, assim, resgatar a diversidade epistêmica destruída e construir outras possibilidades de existir:

Não estamos aqui interessados em uma Museologia mais tradicional, presa por exemplo ao objeto físico e aos seus prédios, templos, ou uma conservação voltada para uma maior durabilidade dos objetos físicos. Não que não acreditamos que ela tenha sua função, mas por entendermos que os objetos apenas são portadores de significados identificados e valorados por seres humanos em dadas circunstâncias. Sabemos também, que muitas das vezes a presença, a autenticidade e a materialidade destes objetos se fazem desnecessárias, por não serem o cerne da base existencial dos museus. O que é mais importante, em nosso ponto de vista, são as relações humanas, sociais, que podem até serem consagradas por meio de objetos. Entendemos que o princípio e a base do estabelecimento do conhecimento museológico e museal está no caráter humano cultural e suas percepções epistêmicas, que indicam o que é relevante, importante ou não. Sem a valorização desta concepção, os Museus se tornam lugares mortos, do vazio, do silêncio, de negação da existência (Melo, 2020, p. 98).

O conceito de fratrimônios, uma proposição terminológica de Mario Chagas (2003), se sustenta nesse processo como uma estruturação de quebra e exaltação de sentidos, vinculados ao conceito de patrimônio, contudo, mascarado por eles. Posteriormente, sua acepção foi amadurecida e a apresentada da seguinte forma:

Há uma herança que se transmite e se recebe na contemporaneidade, talvez pudéssemos de modo poético denominá-la de fratrimônio. Já não se trata de uma herança materna ou paterna, mas de alguma coisa partilhada entre os contemporâneos, entre os amigos e irmãos, entre os membros de uma mesma comunidade (Chagas, 2016, p. 143-144).

Ademais, esse aspecto evidencia uma vertente inclusa no conceito de patrimônio, mas não evidenciada por ele, principalmente pelo termo ainda possuir forte peso machista, ao referenciar a um aspecto patriarcal, com isso:

Evidencia processos e questões que muitas vezes se encontram encobertos pelo que foi convencionalmente atrelado ao conceito de “patrimônio”. O qual percebemos grandes avanços teóricos, mas que em sua estrutura terminológica ainda se apresenta com características excludentes, principalmente na vinculação do prefixo “patri”. Lembramos que pensar “fratrimônio” não é uma negação de tudo que já se foi construído e debatido a respeito de “patrimônio”, e sim, em sua apropriação, criativa, ofertar outra possibilidade que desvela diversos processos de dominação que nos foram impostos. Rompe, por meio de giros decoloniais, com o sistema mundo vigente, onde a máxima de preservação foi a incorporação do patrimônio branco, europeu e de dominância masculina (Melo e Faulhaber, 2021, p. 229).

Resumidamente, compreendemos a proposta museal do Museu Surrupira a partir de uma museologia social com base em Walter Benjamin, “encarna a tarefa de “escovar” a museologia “a contrapelo” o que implica “a afirmação da potência da vida contra a exaltação da morte, da escravidão, da barbárie e da tirania; implica o estímulo à insubordinação contra a prática pedagógica que desejando obediência absoluta ordena: “perinde ac cadaver” – comporte-se “como um cadáver”” (Chagas e Gouveia, 2014, p. 17-18).

Educação Museal e experienciações com audiovisuais

A princípio, a Educação Museal é compreendida no Brasil a partir da Política Nacional de Educação Museal (PNEM) de 2017, resultante de um trabalho iniciado em 2010 com a colaboração de educadores museais, agentes públicos, professores, estudantes, pesquisadores e profissionais de museus. Formatada pelo tripé prático-teórico-político, é compreendida historicamente como surgida conjuntamente aos primeiros museus, com seus fazeres educativos, ao possibilitar a sua formação enquanto campo teórico-conceitual, hoje em consolidação (Costa et al., 2020).

Nesse sentido, a Educação Museal envolve uma variedade de estratégias e técnicas educativas adaptadas aos diferentes contextos e públicos-alvo. Ao incluir visitas guiadas, programas educativos, oficinas, atividades interativas, recursos online e muito mais, seu objetivo é proporcionar experiências de aprendizagem envolventes, ao estimular a curiosidade, a reflexão crítica e a compreensão do patrimônio cultural e científico presentes nos museus. Além disso, busca promover a valorização e a preservação da memória coletiva, incentivar conexões entre os museus e a vida das pessoas, bem como estabelecer pontes entre espaço e tempo.

A Educação Museal não se limita apenas aos espaços físicos dos museus, mas também pode ocorrer em outros ambientes, como escolas, centros comunitários e, até mesmo, online, como em diversas propostas do Museu Surrupira, o qual coloca a educação no centro de suas atividades, utiliza distintos meios de aprendizado, bem como busca promover reflexão e enriquecimento cultural. Ganha, assim, um sentido interdisciplinar, conjugador de dinâmicas didáticas e elementos conceituais das ditas Pedagogias Contemporâneas, com forte aporte freiriano, onde a

Educação Museal é cantada em verso e prosa não só por educadores museais, mas também por outros profissionais que adentram as diversas possibilidades de estar nesses espaços sociais educativos, sejam museus, pontos de memória, ecomuseus, dentre outras tipologias (Quadros, 2020, p. 49).

A relação entre a Educação Museal e as propostas de Paulo Freire está ligada à concepção de educação libertadora e transformadora, a qual valoriza a participação ativa dos indivíduos no processo educativo e defende a ideia da educação como processo dialógico, no qual os educandos se envolvem ativamente na construção do conhecimento e refletem criticamente sobre a sua realidade, para assim transformá-la. Logo, é reconhecida a valorização da cultura, do patrimônio e da memória como elementos essenciais para o desenvolvimento humano e social, bem como a importância de conectar o conhecimento acadêmico com as experiências vividas pelas pessoas, fundamentais nas abordagens do Museu Surrupira (Castro et al., 2022).

Além disso, tanto a Educação Museal quanto a educação de Paulo Freire enfatizam a importância da igualdade, da inclusão e da acessibilidade. Ambas buscam superar as barreiras socioeconômicas e culturais que limitam o acesso à educação, bem como promover a participação de todos os indivíduos, independentemente de sua origem ou condição social. Nessa perspectiva, a produção audiovisual se configura como um elemento de democratização das ações acadêmicas e, em nosso caso, possibilita maior reflexão acerca dos saberes afrodiaspóricos e indígenas, como seus imaginários e mitopoéticas.

Tanto a fotografia como a produção cinematográfica são instrumentos importantes nas práticas de pesquisa de campo. Segundo Name (2015) a comunicação visual apresenta três aspectos importantes, são eles, o impacto, a reflexão e a ação. Para este autor,

as imagens são também aquilo que organiza, socialmente, o mundo à nossa volta. Mesmo o mundo natural, do qual o homem não pode se desligar, é por ele organizado, e tanto os mitos como os conhecimentos científicos são formas dessa organização (Name, 2015, p. 9).

A partir deste olhar, podemos afirmar que as ações promovidas pelo Museu Surrupira lançam mão da linguagem audiovisual como abordagem pedagógica, seja pela prática de ver, ouvir, pesquisar e articular palavras e imagens, para propiciar interação entre estudantes, pesquisadores e afrorreligiosos com saberes e linguagens distintos, ao construir ações contra-hegemônicas organizadas metodologicamente de forma ativa e colaborativa, para criar pontes entre academia e comunidade. Logo, aqui são apresentadas duas vertentes destas ações, estruturadas em projetos como Meu Terreiro Meu Museu e as oficinas desenvolvidas para a programação da 16ª Primavera nos Museus do IBRAM.

Meu Terreiro Meu Museu

A proposta do Meu Terreiro Meu Museu foi desenvolvida pelo Museu Surrupira, a partir da concepção defendida de que os terreiros são espaços museais. Isto é, possuem funções análogas à instituição museal ocidentalizada, por possuírem forte legados no sentido da difusão da memória, assim como na consolidação de identidades, ligadas principalmente a manutenção e preservação dos saberes culturais afrodiaspóricos. Por isso, caracterizamos o terreiro como um fenômeno social complexo das culturas afrodiaspóricas, sem se limitar apenas às dimensões físicas dos lugares de culto, compreendidos como um campo inventivo, material ou não, emergente da criatividade, reinvenção e encantamento do tempo/espaço, o qual pluraliza sentidos poéticos e políticos da vida em sua coletividade (Rufino, 2017; Melo, 2020).

Nesse aspecto, tal acepção conduziu a produção do Manifesto Meu Terreiro Meu Museu, consolidado instrumentalmente para este projeto. Logo, serve de base para pensar terreiros como espaços de memória, locais de formação de identidades, de construção política de afirmação social e defesa da cultura afro-amazônica.

Terreiro, lugar de afeto, onde finco os pés e me enraízo em um sentido de encontro com as ancestralidades. Solo que nos fornece a força da diáspora negra africana e nos recria como seres decoloniais. Espaço permanente ou efêmero onde os corpos constroem os alicerces do existir e compartilham imanências, axé, com o mundo e os seres que o habitam, como humanes e encantades. Lugar do colo materno, da aprendizagem e da virtualização de novos acontecimentos. Também é a trincheira da resistência e da luta, bem como do cuidado e da saúde. Nesse sentido, por que não pensar os terreiros como espaços museais? Aceitá-lo e entendê-lo como museal é não configurá-lo nos modelos de museus imperialistas, mas reconhecer e potencializar esses espaços como lugares de memória, de formação de identidades não convencionais, onde aspectos “patrimoniais” se fazem presente, principalmente os “fratrimoniais”, assim como a filosofia do ubuntu e do bem-viver, quando reconhecemos e nos realizamos na coletividade (Manifesto Meu Terreiro Meu Museu, museusurrupira.blogspot.com/p/exposicoes-virtuais.html).

A partir desta conceituação, presente no manifesto, emergem as experimentações práticas, as quais exemplificamos a partir da produção de dois audiovisuais realizados no Terreiro de Umbanda de Pai Pingo de Oxumaré, no bairro do Marco em Belém (estado do Pará, Brasil), e na casa Asé Nago Igboalama e Osun, em Ananindeua (estado do Pará, Brasil). Nominados, respectivamente, de Meu Terreiro Meu Museu de Pai Pingo de Oxumarê e Meu Terreiro Meu Museu – Tambor de Mina: na casa de Asé Nago Igboalama e Osun, atualmente com mais de 27 mil visualizações, o primeiro, e 2,9 mil, o segundo (figura 1).

Figura 1. Cenas dos documentários produzidos pelo Meu Terreiro Meu Museus em 2022. Fonte: Canal do Museu Surrupira no YouTube, 2022.

A produção destes documentários se iniciou a partir de duas bolsas de Produção Artísticas (PIBIPA), concedidas pelo Instituto de Ciências da Arte da UFPA em 2022. A partir delas, cada bolsista foi designado a gerenciar a produção de um dos documentários, que seriam produzidos conjuntamente pela equipe do Museu Surrupira. Nesse processo, houve oficinas e atividades que auxiliaram a produção, como a de construção de roteiros para audiovisuais e ensaios produtivos de filmagens e edições.

Ao longo do processo foram realizadas visitas aos terreiros e conversas com os sacerdotes e membros de suas comunidades, para estabelecer um processo dialógico, necessário para o entendimento básico dos fundamentos que caracterizam as culturas afrodiaspóricas em questão. Destaca-se que nenhum dos bolsistas, ou estudantes que participaram do processo, tinham domínio ou vivencias em comunidades de terreiro e precisavam compreender melhor aquele espaço sagrado no qual pisavam e abordariam no documentário.

Por exemplo, existia um forte caráter pedagógico advindo dos sacerdotes, com métodos próprios de difusão de conhecimento de suas tradições que, aos poucos, eram desveladas para estes jovens cineastas museais. Esse aspecto nos dá plena compreensão de que o documentário se configurava como um processo de musealização. Nesses encontros, percebia-se a disposição orgânica dos ensinamentos, nós os recebíamos e tentávamos reconhecê-los e registrá-los, não com intuído de sacralizar, mas de dispor aquela realidade como uma vigência de mundo e compreensão do espaço e das pessoas como lugares de memória, de salvaguarda, de complexidade tangível, mas, principalmente, intangível (figura 2).

Figura 2. Filmagens dos documentários Meu Terreiro Meu Museus. Fonte: Museu Surrupira, 2022.

A partir do exposto, foi pensada uma estratégia para os documentários, a fim de transmitir a naturalidade dos processos apresentados, com relatos pessoais e coletivos, principalmente dos sacerdotes. Portanto, o roteiro configurou uma proposição de entrevista aberta, onde emergiam explicações sobre trajetórias religiosas e lógicas estruturais e organizacionais do visível e invisível. Assim, relatos de filhos e filhas dos terreiros também contribuíram, traziam um pouco da vivência da comunidade.

Devemos mencionar que os vídeos foram lançados durante o I Seminário do Museu Surrupira e do Grupo de Pesquisa Museologia, Memória e Mitopoéticas Amazônicas, realizado entre 29/11 e 01/12 de 2022. Na ocasião, os sacerdotes e os entrevistados no documentário foram convidados a palestrar, debatendo-o. Posteriormente, fizemos a apresentação dos documentários nos respectivos terreiros, a fim de retornar à comunidade os resultados e abri-los para um novo e último debate sobre o filme, antes dele ser postado (figura 3). Ao longo do processo foram realizados ajustes conforme manifestações da comunidade e dos sacerdotes.

Figura 3. Apresentação dos documentários para as comunidades de terreiro. Fonte: Museu Sururpira, 2022.

Mariana princesa guerreira do mar e seus desdobramentos

Esta atividade do Museu Surrupira se configurou a partir da elaboração da programação da 16ª Primavera nos Museus do IBRAM, realizada entre 19 e 25 de setembro de 2022. O IBRAM é uma autarquia do Governo Federal do Brasil, criada em 2019, sucedida ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), responsável pelos museus federais e a Política Nacional de Museus (PNM).

No entanto, o referido evento se configura como uma chamada nacional, onde diversos museus do país realizam durante uma semana atividades, as quais seguem uma proposta temática divulgada pela instituição. Em 2022, a temática foi Independência e museus: outros 200, outras histórias e, a partir do seu texto de referência, se configurou a propositiva das atividades:

Neste contexto, citamos o relevante papel de mulheres, africanas/os e afrodescendentes, povos originários, sertanejos, ribeirinhos de norte a sul do Brasil, nas lutas pela independência oficial do Brasil, como, ainda hoje, pela escuta, pela busca de respeito, reconhecimento e integração de suas culturas ao contexto nacional. Buscar conexões entre espaços, temporalidades, histórias e experiências é um caminho para resgatarmos os inúmeros processos de independências no país (Texto de Referência da 16ª Primavera nos Museus, www.gov.br/museus/pt-br/assuntos/eventos/16a-primavera-dos-museus/16-primavera-texto-de-referencia-v2.pdf).

Com base no proposto, buscamos pensar em trabalhar as mitopoéticas de uma encantada de destaque na religiosidade afro-amazônica, a Cabocla Mariana, também conhecida como a Bela Turca de Alexandria. Uma entidade de personalidade forte, acredita-se que originária do Tambor de Mina, mas hoje se faz presente em quase todos os seguimentos afrorreligiosos da região. Ela pertence à Família da Turquia, comanda por seu pai, Toy Darsalan, também nominado de Dom João de Barabaia, Imbarabaia ou Marabaia, conhecido como Rei da Turquia ou Rei Marajó (Melo, 2020). Entidades encantadas compreendidas como mortos-viventes, com aportes simbólicos de orientalismo, ainda pouco conhecidas pela população regional, devido ao racismo religioso. Melo, Rosi e Barroso (2021) mencionam que tais encantados dificilmente conseguem adentrar, em decorrência do racismo estrutural, no panteão do reconhecimento mítico/folclórico da região. Justamente, a partir desse contexto, compreendemos que trabalhar com essas mitopoéticas é de extrema relevância, para romper com o racismo existente e para as entidades conseguirem ganhar maior trânsito no imaginário social. Por exemplo, são raros os livros infantis ou desenhos animados que falam sobre encantados afro-amazônicos.

A partir deste reconhecimento, foi elaborado um conjunto de oficinas, nominadas de Escritas e visualidades do imaginário e mitopoéticas da Cabocla Encantada Mariana, integradas ao longo da 16ª Primavera nos Museus pelo Museu Surrupira, para trabalhar aspectos a partir da produção de materiais artísticos, imagéticos, como fotografias e audiovisuais, os quais se desdobraram em outras linguagens como poesia e música ao longo das atividades (figura 4).

Figura 4. Materiais de divulgação das atividades do Museu Surrupira na 16ª Semana Nacional de Museus do IBRAM. Fonte: Museu Surrupira, 2022.

No primeiro dia (20/09/2022) foi trabalhada a oficina Imagens, narrativas e Escritas, onde a mitopoética da Cabocla Mariana foi apresentada a partir dos seus pontos cantados. Estes se constituem em músicas, entoadas para louvar a entidade, para chamá-la ou por ela cantadas para se apresentar. Estes pontos acabam por desvelar diversos aspectos sobre a mítica dos encantados e são fortemente utilizados nas pesquisas do Museu Surrupira. Por exemplo, observamos características do temperamento da entidade, suas origens e outras acepções. Aspectos que instigam os nossos imaginários e nos levam para muitas representações simbólicas.

Durante a oficina, os pontos cantados foram projetados e entoados para os participantes, os quais foram estimulados a imaginarem mitopoéticas desta entidade. Posteriormente, foram convidados a desenharem storyboards, que representariam a trajetória mítica da entidade para, em seguida, trocarem ideias e pensarem em uma narrativa coletiva sobre ela, de caráter inovador, direcionado às representações simbólicas presentes nos pontos cantados. Os storyboards são compreendidos como uma tecnologia educacional, capaz de causar impacto positivo e facilitar o ensino, mas também despertar criatividade e representar, de forma simples e objetiva, uma diversidade de informações de fácil compreensão para sua narrativa visual, como utilizada por Santos et al. (2021).

Destacamos que a maioria dos participantes da oficina possuíam quase nenhum conhecimento sobre a encantada e alguns, ao invés de desenharem, optaram em desenvolver textos poéticos, por terem maior afinidade e facilidade com essa linguagem artística. Isso, em nossa compreensão, contribuiu para o aproveitamento de inteligências múltiplas e produziu resultados além do esperado.

Feito tal exercício, se iniciou os preparativos para o segundo dia de atividade, nominado de Fotografia e ambientação. Foi solicitado, aos participantes, levar objetos e vestimentas que eles acreditavam estar relacionados às mitopoéticas construídas, a fim de realizarmos um ensaio fotográfico contextualizado nas cenas dos storyboards. Este dia de oficina foi extremamente rico e os integrantes da atividade puderam usar e abusar da imaginação para construírem imageticamente as ideias em um suporte fotográfico. Estas foram produzidas pelo fotógrafo Alexandre A.O. Moraes, o qual possibilitou um resultado profissional. Nessa prática, as mitopoéticas se formavam e se reconfiguravam e traziam uma forte estética, envoltas nos aspectos da contemporaneidade presente no imaginário dos participantes (figura 5 e 6).

Figura 5. Resultado fotográfico e produção do ensaio fotográfico. Fonte: Acervo do Museu Surrupira, fotografia da direta de Alexandre A.O. Moraes, 2022.
Figura 6. Resultados fotográficos da oficina. Fonte: Acervo do Museu Surrupira, fotografias de Alexandre A.O. Moraes 2022.

A oficina do terceiro dia, chamada de Audiovisual e edição, se aportava na ideia de finalização do que foi produzido, editar vídeos, organizar e selecionar as imagens. Ao longo do processo, os bolsistas do Museu Surrupira ficaram encarregados de produzirem imagens, como um making off. Logo, nesse dia, começou a ser produzido um vídeo com todas as atividades e os resultados deram origem ao documentário de curta duração Mariana Guerreira do Mar: uma ressignificação mitopoética. Tal processo foi tão rico que um dos textos/poemas produzidos no primeiro dia foi musicado, ensaiado e apresentado no final do audiovisual.

Concluídas todas as etapas das oficinas, no último dia da Primavera nos Museus, chamamos Pai Welbe Santos (Babá Odé Onigbosinã) para uma roda de conversa intitulada A presença dos Mouros no Tambor de Mina. O objetivo dessa etapa era trazer alguém das comunidades de terreiro para apresentarem um pouco das mitopoéticas dos turcos encantados, para ser somada ao exercício realizado ao longo da semana.

Estas experimentações, a partir da linguagem visual, apresentaram um caráter não apenas pedagógico das mitopoéticas afro-amazônicas, mas estabeleceu uma aproximação ao ethos de uma cultura, pois contribui para a desconstrução de preconceitos estabelecidos e reestrutura novos olhares e sensibilidades. Em nosso ponto de vista, as atividades foram bem sucedias e alcançaram seu objetivo maior, salvo as problemáticas, como participantes impossibilitados de estarem presentes em todas as etapas. Com isso, acreditamos que as diversas possibilidades se constituíram a partir de processos criativos, ao compartilhar e construir conhecimentos por meio de experimentações, a fim de proporcionar aprendizagem, reflexão crítica e participação colaborativa.

Considerações finais

Com base nas vivências e na criação de novos olhares, estabelecidos por meio de experimentações audiovisuais desenvolvidas pelo Museu Surrupira, é possível compreender seu caráter pedagógico e transformador de suas ações, ao estabelecer sua conexão com as concepções de Educação Museal e freiriana, assim como aportes da Museologia Social. A produção do conhecimento, desenvolvida por estas ações, traz em seu protagonismo fazeres de sujeitos e sua interação entre distintos conhecimentos, como os acadêmicos e ancestrais, intermediados pelas mitopoética dos encantados afro-amazônicos.

Para compreender o seu objetivo de atuação, o Museu Surrupira se instrumentaliza da linguagem audiovisual e, com isso, elabora materiais que podem contribuir grandemente com a desconstrução de uma visão estereotipada sobre os elementos constituintes das culturas afrodiaspóricas na Amazônia, a fim de ressignificar o papel destes encantados no imaginário social. Logo, os produtos são compreendidos como uma forma de musealização, conjunta e colaborativa, do mundo, já que seu objeto é dinâmico, complexo e, muitas vezes, efêmero.

Com isso, foram estabelecidos dialogismos, ao levar em consideração saberes outros, os quais valorizam diversas formas de se fazer memória e estabelecer identidades, aportadas nas ancestralidades, elemento importante para a construção de conhecimento não centrado nas lógicas coloniais e imperialistas. Isso nos leva a superar traumas, barreiras estabelecidas pelo preconceito epistêmico, a fim de proporcionar novos caminhos e, ao apresentar nossas experiências, nos conectar com as múltiplas formas de mediação e difusão de saberes por meio da linguagem dinâmica das mídias audiovisuais.

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Os autores e as autoras

Diogo Jorge de Melo é professor do Programa de Pós-Graduação em Cidades Território e Identidade da Universidade Federal do Pará e do Curso de Museologia da mesma universidade. Doutor em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro e Ensino de História de Ciências da Terra pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Museu Virtual Surrupira de Encantarias Amazônicas e desenvolve pesquisas sobre Museologia, Educação Museal, culturas afro-amazônicas, História da Ciência e mitopoéticas. Gisele Nascimento Barroso é professora da Rede Pública Estadual do Pará e Mestra em Educação e especialista em Relações Raciais pela Universidade Federal do Pará. É vice coordenadora do Museu Virtual Surrupira de Encantarias Amazônicas, pesquisadora do projeto de pesquisa Museologia, Decolonialidade e Memória: desdobramentos teóricos e do Grupo de Pesquisa Museologia, Memória e Mitopoéticas Amazônicas, ambos coordenado pelo Prof. Dr. Diogo Jorge de Melo a partir de contextos afrodiaspóricos e amazônicos e desenvolvendo pesquisas sobre Educação, religiosidades e culturas afro-amazônicas e decolonialidade. Marcos Henrique de Oliveira Zanotti Rosi é Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, com especialização em Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas pela Escola Superior da Amazônia e licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas pelas Faculdades Integradas Ipiranga. Secretário e pesquisador do Museu Surrupira, onde desenvolve pesquisas sobre mitopoéticas amazônicas e Educação. Ramon Augusto Teobaldo Alcantara é discente do curso de Museologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) com ingresso em 2019. Bolsista do Museu Surrupira, com bolsa de Produção Artística (PIBIPA) do Instituto de Ciências da Arte da UFPA, 2022, e de Pesquisa (PIBIC-UFPA), 2023, vinculada ao projeto Museologia, Decolonialidade e Memória: desdobramentos teóricos a partir de contextos afrodiaspóricos e amazônicos. Atua com pesquisas em Museologia, Educação e produção de audiovisuais, principalmente em religiosidades afro-amazônicas. Jenifer Miranda Blanco é discente do curso de Museologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) com ingresso em 2020. Bolsista do Museu Surrupira, com bolsa de extensão (PIBEX-PROEX) do Instituto de Ciências da Arte da UFPA, 2022, e de produção artística (PIBIPA-UFPA), 2023, vinculada ao projeto Museologia, Decolonialidade e Memória: desdobramentos teóricos a partir de contextos afrodiaspóricos e amazônicos. Atua com pesquisas em Museologia, Educação e produção de audiovisuais, principalmente em religiosidades afro-amazônicas.

Notas

[1] Considerada a relação estabelecida entre seres humanos com suas realidades, pautas em aspectos de construção de memórias, identidades, patrimônios e fratrimônios em um sentido de preservação e exaltação.

[2] O projeto teve apoio direto de uma bolsa de extensão da Pro-reitoria de extensão (PROEX) da UFPA e contou com duas bolsas de produção artísticas (PIBIPA), concedidas pelo Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Também contou com apoio de duas bolsas de pesquisa do projeto Museologia, Decolonialidade e Memória: desdobramentos teóricos a partir de contextos afrodiaspóricos e amazônicos o qual possui atividades vinculadas.