Educação museal e interculturalidade crítica na Amazônia brasileira: kits e jogos educativos experiência pedagógica do Museu Paraense Emílio Goeldi | Museum Education and critical interculturality in the Brazilian Amazon: the pedagogical experience of educational kits and games at the Emílio Goeldi Museum of Pará
DOI: 10.5281/zenodo.10646782 | PDF
This text analyzes the educational materials (kits and games) that are part of the teaching collection of the Clara Galvão Science Library, at the Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). These materials are produced annually by the Clube do Pesquisador Mirim (CPM – Junior Researcher Club), coordinated by the Cultural Education and Extension Service (SEEDU), and they address topics related to MPEG’s research fields. The study of these materials also allows us to debate, through convergences between the themes of contemporary museology artifacts, critical interculturality and Amazon socio-biodiversity, the museum as a physical-symbolic space for pedagogical experiences: both museum education and the ecological and ethical-politics dimensions, referenced here in an interpretative dialogue about knowledge and the multiple realities of the people of the region.
Keywords: Museum education, educational materials, critical interculturality, amazon biodiversity.
Introdução
O Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), com seus 157 anos de fundação, é uma instituição científica precursora em estudos no campo da biodiversidade, dos processos socioculturais e dos sistemas naturais na região Amazônica, com atuação direta na construção epistêmica de seus eixos norteadores de pesquisa – as Ciências Humanas, Biológicas, Sociais e da Terra –, que o situam como espaço de referência gnosiológica em suas bases locais no norte do Brasil.
De acordo com o art. 1º do Regimento Interno da Instituição (MPEG, 2016), o Museu é uma “[...] unidade de pesquisa integrante da estrutura do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações [...]” (ivi, p. 1). Já o art. 5º, em seu inciso I, destaca que é sua finalidade “[...] gerar e comunicar conhecimentos sobre os sistemas naturais e processos socioculturais relacionados à Amazônia” (ibidem).
Como unidade de pesquisa e dimensão científica, o MPEG tem como uma de suas competências principais gerar e comunicar conhecimentos sobre a dinâmica dos sistemas naturais, assim como dos processos socioculturais na Amazônia, incluindo um panorama específico sobre a sua função educativa. Nesse contexto das competências institucionais associadas à ideia da produção e da comunicação científica, ressalta-se, a responsabilização da sistematização e a conservação de acervos específicos da região.
A inserção do art. 4º nesta seção é pertinente porque situa a pesquisa sobre os kits e jogos educativos enquanto acervo museológico, cujo percurso analítico se faz a partir de um olhar mais pedagógico, no sentido de valorizar o processo científico realizado pelos instrutores e alunos do Clube do Pesquisador Mirim, doravante denominado de CPM/MPEG, em relação à elaboração dos materiais educativos.
A análise deste material pedagógico pode contribuir para o desenvolvimento e disponibilidade dos resultados de atividades decorrentes das pesquisas, como, por exemplo, a produção de material informativo com registro descritivo sobre os kits e jogos que, posteriormente, pode ser utilizado em cursos de formação e/ou extensão direcionados a profissionais da educação com interesse na área museal da Amazônia paraense, bem como para a implementação de uma política de manutenção e de conservação do acervo didático no Espaço da Biblioteca Clara Galvão.
O MPEG desenvolve suas atividades por meio de três bases físicas. A primeira é o campus de pesquisa, a segunda é o Parque Zoobotânico (PZB), ambos localizados em Belém do Pará e o terceiro é a estação científica Ferreira Penna, situada na Floresta Nacional de Caxiuanã, na Amazônia Oriental. Atua, também, na Coordenação do Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (MT), na Rede de Núcleos de Inovação Tecnológica da Amazônia Oriental e no Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia Oriental.
É no Parque Zoobotânico que se localiza fisicamente setores que estão relacionados, de maneira mais direta, com o objeto de estudo da pesquisa, quais sejam: a Coordenação de Museologia (COMUS); o Núcleo de Museografia (NUMUS); o Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP) e o Serviço de Educação (SEEDU). Trata-se de setores que atuam na promoção de ações educativas no campo da ciência e sua relação com a natureza, com as sociedades, em seus aspectos patrimoniais material e imaterial.
A pesquisa que deu origem a este artigo esteve vinculada à Coordenação de Museologia, mais especificamente ao Serviço de Educação. De acordo com o art. 28º do Regimento interno, incisos IV e VIII, respectivamente, uma das principais atribuições da COMUS é “prover o acesso do público ao Parque, qualificando a visitação aos vários ambientes nele localizados através de ações museais” (MPEG, 2016, p. 12) e “realizar ações de comunicação expográfica e educativa nas áreas de interesse do MPEG” (ibidem). Assim sendo, destaca-se, na sua estrutura organizacional, a especificidade museal do MPEG no contexto Amazônico.
Do ponto de vista educativo e sob a coordenação do Serviço de Educação, o Museu tem a função de planejar e executar ações pedagógicas e de inclusão social direcionadas ao contexto sociocultural e ao exercício da cidadania das populações amazônicas, além de gerenciar atividades ligadas ao Núcleo de Visitas Orientadas (NUVOP), dentre elas, aquelas voltadas para a efetivação de “cursos, oficinas, palestras e treinamentos para professores, estudantes de nível superior, profissionais especializados, monitores e estagiários, terceira idade” (ivi p. 13), assim como, “produzir e dinamizar material educativo nas diversas áreas do conhecimento da instituição” (ibidem).
Foi no trânsito desses setores que a pesquisa sobre os kits e jogos educativos produzidos pelo CPM/MPEG foi realizada, produzindo dados e informações que contribuíram para a compreensão empírico-epistemológica dos aspectos sociais e culturais dos temas abordados nestes materiais, com destaque para a sua importância na relação com a educação escolar e não escolar, igualmente como na construção de relações interculturais com os temas desse acervo didático que está sob a responsabilidade da Biblioteca de Ciências Clara Maria Galvão.
O Clube do Pesquisador Mirim é um projeto voltado para a realização da iniciação científica de alunos dos ensinos fundamental I e II. Em sua estrutura, alguns tópicos delineiam claramente sua função educativa ao referir-se à realização de “práticas educativas que estimulem a melhoria das condições de vida e o reconhecimento da identidade e patrimônio cultural amazônicos” (MPEG, 2020, p. 10), assim como “práticas educativas de caráter lúdico e cultural voltadas para o público em geral do Parque Zoobotânico” (ibidem).
A metodologia utilizada se constrói durante o decorrer do ano, com várias atividades educativas, tendo como resultado, ao final de cada turma, a elaboração de um material pedagógico que pode ser um kit, um jogo ou uma cartilha, todos elaborados pelos alunos do Projeto. Em média, são produzidos de quatro a sete materiais por ano. Estes dados sofrem alterações de acordo com o número de turmas oferecidas em cada seleção.
Dessa forma, incluído no contexto da educação científica, o CPM/MPEG assegura a relação entre museu e educação, conforme mencionado anteriormente, assim como associa-se pedagogicamente às ações voltadas para o atendimento ao público escolar por intermédio de programas educativos organizados pelo NUVOP e/ou para outras práticas educativas com formato lúdico e cultural, na perspectiva de atender satisfatoriamente o público em geral do Parque.
O enfoque deste estudo pauta-se nos pressupostos da interculturalidade crítica dos materiais educativos, dialogando a partir da dimensão epistemológica de Candau (2016), que designa a interculturalidade crítica como possibilidade de construção de novas matrizes analíticas assentadas em uma lógica plural, a qual problematiza a concepção totalitária e abissal da ciência.
Considera-se, dessa forma, a sua especificidade enquanto museu de história natural e de etnografia e como um instituto de pesquisa da região Amazônica, conforme consta no seu Plano Diretor (2017), que demarca um caminho epistêmico plural no campo da comunicação científica e museológica, onde é possível situar a produção dos kits e jogos que integram o acervo didático do Serviço de Educação do Museu.
A pesquisa contribuiu, igualmente, para o debate epistemológico da educação como campo científico integrante da unidade de pesquisa do MPEG, estabelecendo subsídios para um direcionamento interpretativo da educação museal na Amazônia paraense, bem como para a construção metodológica de propostas de atividades em visitas orientadas no PZB e no espaço da Biblioteca de Ciências Clara Galvão e, até mesmo, para ações educativas futuras a serem realizadas externamente, de caráter itinerante.
Movimentos teórico- metodológico da pesquisa
Ao buscar-se a compreensão do objeto de estudo e a decorrência de concepções que amparam esta pesquisa, a construção do referencial teórico encontra-se alicerçada na circunscrição das categorias analíticas principais, quais sejam: educação, educação museal, saber da experiência, cultura e interculturalidade crítica. Fundamenta-se no pensamento de alguns autores que discutem as categorias referências, com destaque para Bondía (2002), Brandão (2002; 2007; 2015), Desvallées e Mairesse (2013), Freire (2001) e Gohn (2010).
Por considerar-se que a interface principal que informa os kits e jogos está entre os campos científico e educacional, a educação configura-se como um processo inerente à vida humana, caracterizada de formas e manifestações diversas, sendo oportuno destacar que não há uma singularidade em face das inúmeras maneiras para a sua realização. É neste apreciar conceitual sobre a educação que situa-se a asserção para o trilhar interpretativo a respeito da importância em compreendê-la – bem como seus epistemes – no contexto do MPEG, sinalizando um campo expressivo de sentidos a ela atribuídos.
Ao contextualizar a educação como prática permanente do ser humano em uma dimensão histórico-social, Freire (2001) argumenta que o aprender e o ensinar são exemplos da concretude da existência humana que perpassam pela “criação, invenção, linguagem, amor, ódio, espanto, medo, desejo, atração pelo risco, fé, dúvida, curiosidade, arte, magia, ciência, tecnologia” (p.12). O pensamento do autor possibilita que se tenha um olhar singular para o estudo dos kits e dos jogos no espaço físico-simbólico da educação no Museu Goeldi e suas múltiplas formas de promover o ensino aprendizagem.
Por conseguinte, possibilita, de certa forma, uma reflexão sobre os temas e conteúdos abordados nos materiais pedagógicos, posto que trazem um pouco da realidade amazônica para assuntos relacionados aos diversos temas neles inscritos, principalmente por atentar para questões específicas, criando outras leituras contextuais. A educação abordada nesta pesquisa, segundo as contribuições dos autores já citados, partilham de uma coerência teórica com a segunda categoria que versa sobre a dimensão educativa do museu e, também, sobre o conceito de educação museal, sendo uma categoria complementar nesta composição teórica.
Em relação à interculturalidade crítica, epistemologicamente, Candau (2016) designa-a como a possibilidade de construção de novas matrizes analíticas assentadas em uma lógica plural, a qual problematiza a concepção totalitária e abissal da ciência (Santos, 2010), situando o debate para além da dicotomia entre os saberes, em uma amplitude que pondera a relevância e o diálogo entre a multiplicidade de conhecimentos presentes na sociedade. Subsidia, por conseguinte, uma reflexão para o campo da educação enquanto uma prática social de formação cultural e humana, contribuindo para a legitimação de saberes da experiência produzidos por grupos socialmente invisibilizados.
Candau (2016) situa a interculturalidade crítica como sendo um caminho político que pode contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática e possibilitar a valorização da diversidade cultural, a luta pela igualdade, as oportunidades econômicas, a participação social e o reconhecimento das diferenças. Nesse sentido, colabora para a construção de alternativas epistêmicas e políticas de recursos direcionados ao prisma de uma justiça social global. Portanto, é relevante construir outro percurso, pós-abissal de pesquisas, que permita se ter novos referenciais e ampliar o debate nesse campo.
Assim sendo, ao contextualizar a educação museal sob o enfoque da interculturalidade crítica na Amazônia paraense por meio das análises dos kits e jogos educativos, situa-se o MPEG como espaço de pesquisa e de observação de fenômenos sociais de natureza educacional, científica e cultural, onde compreende-se as singularidades e pluralidades do cotidiano das comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas e indígenas da região no protagonismo de uma ciência e de uma política cultural diversa no território amazônico.
Pautado nessa base epistemológica, o primeiro movimento de pesquisa foi realizado em 2015 como parte do Projeto apresentado junto ao Setor de Educação, em um estágio de iniciação científica. Metodologicamente, realizou-se um levantamento dos kits e jogos disponíveis nos arquivos da biblioteca Clara Galvão, tendo como recorte temporal os anos de 2009 a 2014.
Os resultados do mapeamento e a análise foram sistematizados como um Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade do Estado do Pará (UEPA), que evidenciaram uma multiplicidade de temáticas relacionadas à biosociodiversidade amazônica que, posteriormente, foram trabalhadas nos kits e jogos produzidos nas turmas do CPM/MPEG. Eram conteúdos que mostravam um aspecto singular da educação museal na Amazônia, sobretudo por pautarem-se em uma abordagem multidisciplinar, imprimindo uma dimensão comunicativa diferenciada a estes os objetos.
Considera-se, ainda, que os kits e jogos do Projeto são produtos de um trabalho de longa data voltado para a iniciação científica infanto-juvenil, elaborados em conjunto com instrutores do setor educativo da instituição e direcionados aos estudantes da educação básica que passam por um concorrido processo seletivo no início de cada ano.
A dimensão científico-pedagógica dos kits e jogos do CPM/MPEG
O percurso pedagógico de criação dos kits e jogos conecta-se com as ponderações de Marandino (2016) ao apresentar a educação em museus, os materiais educativos dela decorrentes e a atuação dos educadores como forma de construção e de promoção do conhecimento.
Epistemologicamente, a autora reconhece estes materiais produzidos nos setores educativos dos museus como artefatos pedagógicos de construção e de divulgação do conhecimento, o que pode estabelecer uma relação com a proposta educativa do Projeto do CPM/MPEG. Contribui, também, para a ampliação do debate relacionado à produção de materiais educativos nos museus para além das outras atividades desempenhadas nestes espaços como, por exemplo, o atendimento ao público, as exposições, as monitorias, os cursos, entre outros. Para a autora, os museus e seus educadores produzem materiais como réplicas ou modelos que “imitam” as obras ou os organismos taxidermizados para educação e deleite dos visitantes que, na maioria das vezes, podem ser tocados e manipulados.
Existem outros objetos que são uma extensão dos conteúdos relacionados às exposições ou ao acervo e que podem maximizar uma visita ao espaço museal, a saber: cadernos, guias, folders, livros, materiais eletrônicos, audiovisuais, aplicativos e objetos virtuais com textos e atividades.
Com base nessas reflexões, os kits ou o conjunto de materiais são usados para dinamizar as atividades internas ou, até mesmo, como serviço de empréstimo. É importante aproximar a perspectiva desse enunciado com as informações concedidas pelos instrutores no estudo realizado no ano de 2015, dado que evidencia a concepção dos servidores da instituição em relação aos materiais produzidos.
Os kits apresentam em seu conteúdo e estrutura um agrupamento didático de informações que pode, pedagogicamente, auxiliar no entendimento de temáticas específicas da realidade amazônica. Suas legendas e folders tem como finalidade promover conhecimento para o visitante em uma abordagem didática ampliada. Apresentam formatos diferenciados, onde alguns seguem o padrão de um painel magnético e de caixas interativas, que podem incluir cartilhas e alguns jogos. Já em relação ao jogo educativo em si, compreende-se como um instrumento de ludicidade utilizado como um recurso que depende de fatores como tempo, espaço, regras e ordens.
Ambos, na visão dos instrutores, são objetos de comunicação com o público, posto que são artefatos museológicos plurais assentados a partir das referências das bases científicas do MPEG presentes no percurso formativo de crianças e de adolescentes para entendimento inicial no campo científico-pedagógico de assuntos específicos da Amazônia, considerando sempre a multiplicidade das dimensões social e cultural, bem como a realidade de suas fauna e flora.
Nesse contexto, a produção de kits e jogos se constitui como espaço para a construção de conhecimentos e iniciação de pesquisa, cujo diálogo com os elementos educativos museológicos contribui para o debate de um conceito ampliado de educação e valorização da cultura, especialmente para a região amazônica, onde a realidade social, educacional e o processo formativo dos sujeitos têm uma proporção plural e diversificada, que requer um outro olhar epistêmico para além de uma lógica interpretativa da ciência abissal (Santos, 2010).
A análise do material mapeado revela um extenso encadeamento temático dos kits e jogos do CPM/MPEG no decorrer de sua trajetória de vinte e cinco anos, o que configura um acervo educativo múltiplo e que demarca uma particularidade para o Museu mais antigo da região norte. Contudo, é necessário reconhecer certa lacuna nas potencialidades sistêmicas desses materiais por não se achar, durante a realização da pesquisa, um registro dos temas dos kits e jogos desde a sua criação, o que, de certa maneira, impacta na memória institucional em relação ao acompanhamento das produções do projeto do Serviço de Educação do MPEG e sua contribuição para o fortalecimento da educação museal na Amazônia, assim como para a construção de uma educação intercultural crítica em espaços museais, favorecendo o contexto global predominantemente marcado por práticas de exclusão que se agravam em face do avanço de uma agenda neoliberal.
Tal perspectiva dialoga com a recente definição de Museu estabelecida pela comunidade museal brasileira no Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM-Brasil), que incorporou 20 termos que fazem parte de uma pauta de luta democrática, são eles: antirracista, bem-viver, comunicar, cultura, decolonial, democrático, direitos humanos, educação, experiência, futuros, inclusivo, instigar, patrimônio, pesquisar, público, salvaguardar, social, sustentável, território e transformar. Todos suscitam afinidades com os temas trabalhados nos kits e jogos, o que provoca uma reflexão sobre termos que atravessam os conteúdos abordados em cada material educativo.
Entretanto, nesta pesquisa, os termos elencados na abordagem dos materiais analisados situam-se nos seguintes campos: cultura, experiência, antirracismo, decolonialismo, democracia, direitos humanos, educação, futuro, social e território, pois o seu direcionamento interpretativo converge com os pressupostos da educação intercultural crítica que, segundo Candau (2008), configura-se epistemologicamente como a promoção de um processo sistemático de diálogo entre múltiplos grupos socioculturais.
A autora defende uma perspectiva intercultural direcionada para “promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade” (p. 52).
Essa perspectiva sustenta o estudo dos kits e jogos que versam sobre temáticas que tratam de elementos circunscritos em aspectos socioculturais e ambientais da Amazônia brasileira e aponta para a necessidade de se fortalecer o diálogo com e entre a diversidade de povos e saberes identificados nos temas dos materiais analisados, o que se alinha com a preocupação de ampliação dos horizontes do campo museal amazônico, trazendo para o seu contexto outras perspectivas pautadas na educação intercultural crítica, em contraposição à reorganização de projetos neocoloniais e neocolonizadores mundiais que chegam à Amazônia e repercutem nos modos de vida dos povos originários e nas comunidades tradicionais.
A sociobiodiversidade orienta a produção dos kits e jogos
Durante o mapeamento e a análise dos temas que informam a produção dos kits e dos jogos, buscou-se situá-los para além do diálogo entre as culturas e saberes dos povos amazônicos, de forma a construir aproximações com descritores incorporados na definição brasileira de museologia, considerando a singularidade do campo museal amazônico por se entender que tal movimento teórico-metodológico, ao trazer para o campo museal projetos ético-políticos, pode contribuir para fortalecer a luta dos povos originários e de comunidades tradicionais rurais-ribeirinhas amazônicas.
Dessa forma, a pesquisa visa fortalecer o debate que trata de relações sociais horizontais entre a diversidade de grupos humanos e reconhecer inclusive as suas diferenças em contraposição à homogeneização cultural tão cara para os projetos colonizadores e neocolonizadores.
Discorrendo sobre as temáticas que fazem parte da produção dos materiais pedagógicos do Clube do Pesquisador Mirim e com base nos registros institucionais desses objetos museológicas, o foco volta-se aos kits e jogos que trazem, em seus conteúdos, concepções que se alinham epistemologicamente com uma perspectiva intercultural crítica, revelando questões ético-políticas relacionadas a aspectos socioculturais, saberes e modos de vida dos povos dos rios e da floresta na sua relação com contextos da biodiversidade Amazônica.
De acordo com as concepções de Desvallées e Mairesse (2013), a educação museal é um agrupamento de conceitos, valores, práticas e saberes que sustentam a estruturação de novos saberes para o visitante. Na interação metodológica com o estudo dos materiais pedagógicos, ela é o fio condutor para um outro viés no museu, por reputar a viabilidade de elaboração de novos conhecimentos.
Ainda de acordo com os autores, “a educação, em um contexto mais especificamente museológico, está ligada à mobilização de saberes relacionados com o museu, visando ao desenvolvimento e ao florescimento dos indivíduos, principalmente por meio da integração desses saberes, bem como pelo desenvolvimento de novas sensibilidades e pela realização de novas experiências” (ivi, p. 38-39).
Infere-se, portanto, outra pedagogia, a museal, que tem potencial para mobilizar e disponibilizar novos conhecimentos ao público visitante do Museu. Por essa perspectiva, abrange-se um conjunto representativo de assuntos e de metodologias que contribuem diretamente para a formação crítica e autônoma dos sujeitos que fazem parte do CPM/MEPG no contexto da interação e do envolvimento com os profissionais, com a produção de acervos e com as experiências educativas no campo museológico.
No entrelaçar dos campos teórico-empíricos, destaca-se um foco particular para o aspecto da experiência pedagógica como força de uma conexão entre formação e experiência que, conforme argumenta Bondía (2002), é o sentido dos acontecimentos na vida humana, cuja formação é inseparável do ser humano constituído pela subjetividade particular.
O autor trata os acontecimentos como algo comum a todos, entretanto, considera a vivência como individual, conforme depreende-se da narrativa a seguir: “o saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, que dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria (ivi, p. 27).
Por essa perspectiva de Bondía (2002), visualiza-se o museu como espaço formativo de vivências e de construção de saberes; um ambiente configurado por uma riqueza sociocultural, atravessado por múltiplos sujeitos, cujos projetos são portadores de processos educativos geradores de conhecimento. Essas reflexões permitem pensar que o visitante do MPEG, ao ter contato com os kits e jogos, pode conhecer um pouco das temáticas que tratam sobre identidade cultural e construir um olhar plural sobre etnias originárias e algumas comunidades de referências rurais-ribeirinhas da região amazônica por meio da interação e da mediação com esses materiais educativos.
Tem-se, dessa forma, um vínculo simbólico entre os materiais pedagógicos enquanto objetos museológicos e de biosociodiversidade amazônica, que podem auxiliar na comunicação e na formação de conhecimento do visitante. Ademais, se constituem em acervos comunicativos com uma abordagem, estrutura e linguagem diferenciadas, que descrevem sobre realidades sociais inscritas em culturas locais da Amazônia paraense. As temáticas encontradas nos kits e jogos educativos estão no campo cultural, territorial e socioambiental, o que sinaliza a importância do educacional no contexto de um espaço-museu e, ao mesmo, tempo associa-se com o prisma interpretativo da interculturalidade crítica.
Os encaminhamentos dessa perspectiva direcionam-se ao contexto da inter-relação da diversidade cultural e ético-política de um projeto de sociedade que é participativo e dialógico. Os conteúdos desse acervo, ao dialogarem com referências plurais da realidade amazônica paraense, revelam o potencial da educação museal como um movimento dinâmico e permeado por múltiplos saberes.
A seguir, cita-se os materiais educativos publicados entre os anos de 2009 a 2018 analisados neste trabalho.
Do levantamento realizado durante a pesquisa foram mapeados cinco kits e jogos já catalogados na Biblioteca de Ciência Clara Galvão, por reconhecer que se tratam de importantes temas que dialogam diretamente com a interculturalidade crítica.
O primeiro kit/jogo, sob o título de Cadê a contribuição negra que está aqui? (2009), versa sobre a importância dos negros africanos no Brasil, o processo de escravidão, a questão racial e a organização da população negra que mantém suas memórias em comunidades quilombolas. Tem como objetivo subsidiar ao visitante informações acerca da diversidade cultural, oportunizando o conhecimento, a reflexão e o reconhecimento das heranças da cultura negra na construção da identidade brasileira.
O segundo, com o título de Passeio em Itancuã Miri: para conhecer sua gente e seu ambiente (2012), é um produto que disponibiliza informações da história e do modo de vida da comunidade remanescente do quilombo de Itancuã Miri, localizado no município do Acará. Aborda sobre o contexto histórico geral das comunidades quilombolas e, também, dos aspectos culturais e econômicos do local.
O terceiro material, denominado de Populações tradicionais (2013), é um jogo educativo, cujo conteúdo informa sobre algumas populações tradicionais da Amazônia e seus saberes. O objetivo é possibilitar que o participante conheça um pouco das populações tradicionais da região amazônica como por exemplo: quilombolas, indígenas e ribeirinhas.
O quarto kit/jogo, sob o título de Passeio no Araci: meus impactos no meio ambiente (2015), é um produto resultante das pesquisas feitas pela turma de alunos do CPM/MEPG que tinha como temática a questão da “sustentabilidade cabocla” na comunidade do Araci, no município de Santa Bárbara, no estado do Pará. Analisou-se as práticas sustentáveis praticadas in loco para informar o visitante sobre a localidade e contribuir na conscientização de práticas mais sustentáveis para o meio ambiente.
O quinto e último material analisado foi o kit educativo situado de forma centralizada, sob o título Saberes dos povos amazônicos. Trata-se de um kit no formato de painel magnético que tem em seu conteúdo dados acerca de alguns povos da região amazônica, como as comunidades rurais-ribeirinhas, povos originários e quilombolas. É constituído por três placas magnéticas com uma ilustração de cada comunidade, bem como uma breve descrição dos aspectos sociais, históricos e culturais de cada população tradicional.
Esse conjunto amostral dos kits e jogos produzidos no CPM/MPEG são artefatos pedagógicos onde a experiência educacional é mediada, situa-se e/ou dialoga com a educação museal e com as premissas da interculturalidade crítica, revelando como um campo plural de conhecimento e de circulação de saberes assentado na conexão entre uma diversidade de grupos culturais singulares em que a vivência com a biodiversidade aproxima-se do pensamento decolonial da diferença que, ao invés de afastá-los, oportuniza uma interação.
Por sua vez, ao apoiar as análises nos princípios ético-políticos e epistemológicos da interculturalidade, busca-se ultrapassar a divisão do conhecimento e contrapor-se às desigualdades sociais, tão caras aos projetos da ciência moderna, colonial e neoliberal, respectivamente.
Conclusões
Conforme indicam as funções do CPM/MPEG, as ações educativas do SEEDU têm como princípio e foco norteador as comunidades da região da Amazônia, visando melhores condições de vida e o reconhecimento de sua identidade cultural. Tal perspectiva caminha em coerência com a análise intercultural dos kits e jogos educativos e de seus alusivos conteúdos, pois, ao realizar uma análise e interpretação a partir da descrição desses materiais como artefatos específicos, constatou-se que constituem uma das coleções pedagógicas da instituição que podem viabilizar outras alternativas de pesquisa no contexto da educação museal amazônica.
Dessa forma, configuram-se como um percurso interpretativo singular para a educação, analisandos a partir da interface com a concepção intercultural das temáticas que versam sobre os elementos circunscritos no aspecto da sociobiodiversidade da Amazônia pela alternativa de diálogo com as múltiplas realidades dos povos e saberes, identificados nos temas dos materiais analisados, percorrendo, assim, o horizonte da contribuição epistemológica que a produção dos kits e jogos do CPM/MPEG tem no campo intercultural da educação museal no cenário amazônico, nacional e internacional.
Referências
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Os autores
Adriele de Fátima de Lima Barbosa é mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UEPA). Graduada em Pedagogia pela UEPA. Atuou como bolsista no Programa de Capacitação Institucional (PCI), e como bolsista do Serviço de Educação do Museu Paraense Emílio Goeldi (SEEDU/MPEG). Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da UEPA do subprojeto de Pedagogia-Belém. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente (GRUPEMA).
Rodrigo de Cássio da Silva é doutor em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), docente da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atua com temas sobre educação ambiental, meio ambiente e sustentabilidade; e tecnologias aplicadas ao ensino de ciências. Integra o Museu de Ciências da UEPG.
Maria das Graças da Silva é pós-doutora em Sociologia Ambiental pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEPA e do curso de licenciatura em Pedagogia. Líder do GRUPEA. Membro da Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC). Co-autora do Livro Territórios insulares. Saberes da biodiversidade amazônica e seus processos educativos.