Vivências do encantado na escrita coletiva de quatro mulheres indígenas e uma mulher ribeirinha do estado do Pará | Experiences of enchantment in the collective writing of four indigenous women and a riverside woman from the state of Pará
DOI: 10.5281/zenodo.12785015 | PDF
Abstract: This Report is the result of a Self-Research and collective writing workshop. The theme comes from the Experiences of Enchantment in the collective writing of four indigenous women and a riverside woman from the state of Pará belonging to the Professional Master's Degree in Indigenous School Education at the State University of Pará/UEPA. The results showed that specific academic literacies, based on a decolonial perspective, which understands writing as a reflection of solidarity and the sharing of knowledge between those involved, are much more efficient.
Keywords: collective writing; experiences of the enchanted; professional master’s degree for indigenous teachers; UEPA.
Introdução
O Relato aqui reproduzido é resultado de uma oficina de Autopesquisa e Escrita Coletiva ministrada pela professora doutora Mariateresa Muraca, do Instituto Universitário Dom Giorgio Pratesi, na Itália, aos professores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEEI) da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
O PPGEEI tem por objetivo atuar na qualificação profissional de professores indígenas, de forma a estimular a produção científica e a produção de materiais didáticos, adequados à realidade dos professores-pesquisadores (UEPA, 2018). Nesse cenário, desde 2019, a UEPA em associação a outras três universidades públicas do Estado do Pará, a saber, Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) e Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), formou 34 professores indígenas de etnias diversas (Negrão-Oliveira, 2024).
A relação estabelecida entre os professores indígenas em formação e os professores formadores tem sido pautada por processos de decolonialidade (Quijano, 2005). Esses processos ajudam na compreensão da necessidade de garantir uma formação mais adequada aos universos dos professores indígenas, haja vista, boa parte dos discentes do Programa serem falantes de uma língua indígena e também da língua portuguesa, ou seja, vivem em um contexto entre línguas (Negrão-Oliveira, 2023). O estar entre línguas reforça os movimentos de reexistência que os povos indígenas desejam vivenciar no hoje e no agora de suas manifestações. Nesse movimento de reexistência, entendemos a necessidade e a produtividade de falar com os povos indígenas e não mais falar sobre os povos indígenas. O falar com implica ouvir atentamente as narrativas orais trazidas pelos povos indígenas que chegam ao Mestrado Profissional; implica reconhecer essas narrativas como manifestações da cultura, da história e da educação indígena, inicialmente propagada pelos anciãos, que se alimentavam das “palavras que encantam e dão direção, provocam e evocam os acontecimentos dos primeiros tempos, quando somente ela, a Palavra, existia” (Munduruku, 2010, p.7); implica ainda, promover, no âmbito da Educação Escolar Indígena, essas narrativas que encantam, pois referenda a importância do oral, que também pode se manifestar no escrito, sob as mais variadas linguagens e as línguas utilizadas por esses povos dentro do espaço da escola.
Desta forma, a Escrita Coletiva e/ou colaborativa aqui representada é resultante dos processos de interculturalidade (Walsh, 2009), coletividade (Krenak, 2018) e reexistência, próprios dos povos indígenas e daqueles que ao viver na Amazônia, compreendem as essências do Bem viver (Acosta, 2016). Resulta, ainda, do falar com os povos indígenas, em que os letramentos sociais e interculturais interagem em uma dinâmica, que converge para uma escrita de um único texto. O processo de autoria sai do âmbito do individual e consolida-se na esfera do coletivo. O panorama do coletivo alicerça-se nos saberes utilizados pelos povos indígenas, pois segundo Krenak (2018)
é o mais velho contando uma história, ou um mais novo que teve uma experiência que pode compartilhar com o coletivo que ele pertence e isso vai integrando um sentido da vida, enriquecendo a experiência da vida de cada sujeito, mas constituindo um sujeito coletivo.
Nessa perspectiva, o exercício da Escrita Coletiva vivenciado durante a oficina, ministrada pelo Google Meet, é um exercício que já faz parte da relação acadêmica dos professores indígenas e não indígenas que atuam no Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA. Essa relação, pautada no caráter decolonial (Quijano, 2005) tem ajudado os professores formadores a compartilhar experiências e entender mais apropriadamente os processos próprios de linguagem utilizados pelos docentes em formação.
Assim, a temática das Vivências do encantado[1], escolhida para a escrita colaborativa neste artigo, apresenta-se sob a forma de um Relato de experiência, pautado nas vivências das docentes em formação e da docente formadora. A temática está presente no dia a dia dos povos indígenas, como marca efervescente de toda a oralidade utilizada por eles, seja na educação indígena, seja na Educação Escolar Indígena; e também faz parte da realidade da professora formadora, que é amazônida e ribeirinha. Desta forma, todas as mulheres nortistas envolvidas nesta Escrita Coletiva trazem consigo as experiências do encantado vividas por elas, nos processos educacionais que as constituíram.
O Relato constitui-se desta introdução, que apresenta o quefazer (Freire, 1997) desta tessitura colaborativa; o tópico O contar e o encantado nas narrativas orais discorre sobre a compreensão das formas próprias de narrar expressadas ainda hoje pelos povos da Amazônia; o tópico Nossas vivências do encantado trazem para a construção o experienciado por cada uma das autoras envolvidas na escrita colaborativa; e, por último, Algumas considerações do narrar coletivo traz o apanhado dos saberes mobilizados nesta construção.
O contar e o encantado nas narrativas orais
O pensador suíço Paul Zumthor (2018) acredita que o primeiro sentido a ser despertado na criança, ainda no feto, é o ouvir. Corroboramos com ele e ratificamos a importância da prática do ouvir como o nosso cordão umbilical com as narrativas orais. O que reforça o fato de que “o corpo, pela audição, está presente em si mesmo, uma presença não somente espacial, mas íntima” (ivi, p. 80). Nos interligamos pelo ouvir e nos essencializamos também a partir desse ouvir tão próprio das linguagens dos povos da Amazônia, para quem as narrativas orais tornaram-se ontológicas para que se compreenda o ser. Para nós, indígenas e não indígenas da Amazônia, uma narrativa carrega consigo todo o caráter lúdico de um jogo (Zumthor, 1997), pois “o contador realiza de uma forma particular a tarefa de convocar imagens e ideias de sua lembrança misturando-as às convenções textuais e verbais de seu grupo, para adaptá-las segundo o ponto de vista cultural e ideológico de sua comunidade” (Patrini, 2005, p. 106). É nesse invocar de imagens e lembranças culturalmente situadas, que temos nos transportado em muitas e várias gerações pelos caminhos da oralidade, do narrar, do sentipensar (Arias, 2010). As muitas e várias histórias ou narrativas têm povoado nossos imaginários e nos levado a acreditar no encantado, nos espíritos que habitam os rios e as florestas de nossas terras. Esses espíritos, muitas vezes, assumem a figura de Mães, que são entidades protetoras das espécies existentes, e podem se manifestar sob diversas motivações, que vão desde assustar ou guiar os que estão perdidos nas matas, até oferecer revelações de cura, para aqueles que adentram no universo dos encantados (Gondim, 2016). E assim temos vivido, ao longo de mais de cinco séculos de história, conforme o escritor alemão Walter Benjamin (1995), mergulhados em narrativas.
Nossas vivências do encantado
Neste tópico apresentamos as experiências vividas por cada uma das professoras em formação e da professora formadora sobre as vivências do encantado trazidas por elas ao longo da construção pessoal e profissional. Essas vivências têm sido materializadas sob as mais variadas linguagens, nos espaços da educação indígena e da Educação Escolar Indígena, sobretudo nas escolas das aldeias em que as professoras indígenas, aqui representadas, atuam.
O menino encantado
Sou Angélica dos Reis Tembé, pertencente ao povo indígena Tembé-Tenetehar, da Terra Indígena Alto Rio Guamá, tenho 36 anos de idade e sou moradora da Aldeia São Pedro, que fica localizada na Terra Indígena Alto Rio Guamá, próximo ao município de Santa Luzia no estado do Pará. Desde o ano de 2004 eu atuo como professora na Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio Anexo Pira, que fica localizada na Aldeia Pira Terra Indígena Alto Rio Guamá. Atualmente, sou aluna do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA. A narrativa trazida por mim, para este momento de Escrita Coletiva, foi narrada pelo senhor Cláudio Ribeiro dos Santos Tembé, conhecido como Catito Tembé, pertencente ao povo indígena Tembé-Tenetehar, da Terra Indígena Alto Rio Guamá, morador e liderança da Aldeia Pira, localizada na Terra Indígena Alto Rio Guamá, próximo ao município de Santa Luzia do Pará, que narrou a seguinte história:
Um dia uma cobra mordeu um menino chamado Bira, que residia na aldeia sede do povo Tembé da região do Guamá, chamada São Pedro, no município de Santa Luzia do Pará. A mãe do Bira mandou um de seus filhos junto com mais outros meninos chamar seu marido, que estava na mata arranchado próximo de uma cachoeira, chamada de cachoeira do Bacaba (um igarapé). Os meninos saíram andando na mata, lá para a cachoeira, atrás do pai do Bira, só que antes de chegarem perto da cachoeira do Bacaba, existia um lago e lá habitava uma piaba. O irmão do Bira flechou a piabinha e ela virou de barriga para cima como se estivesse morta. Os meninos seguiram caminhando e em um certo meio da viagem, o menino que havia flechado o peixe, começou a sentir dor de cabeça e queria correr para o lago onde estava a piabinha e os outros parceiros agarravam e não o deixavam correr. Os meninos nem chegaram no rancho onde estava o pai do Bira e voltaram com o menino. Eles vieram pelejando com ele na mata, como eram todos molecotes (rapazinhos) quando ficavam cansados de agarrar o garoto, eles soltavam e ele corria para voltar lá para o lago onde estava a piaba, e eles corriam atrás e agarravam-no novamente, vieram nessa peleja, até que de tardezinha eles chegaram na aldeia Paxiubau. Nessa aldeia, uma mulher os ajudou a levarem o menino até a aldeia sede onde era a casa dele, mas ele já estava quase morto e quando a pajé[2] da aldeia, chamada tia Hilda chegou, não teve mais jeito, a mãe d’água já tinha levado a sombra dele e o menino morreu.
Conforme o senhor Catito, que tem contado essa narrativa para o nosso povo, o garoto encantado era seu primo e desde essa época ele ficou andando pela aldeia. Um dia, o menino encantado também mexeu com a mulher do seu Catito e, se não fosse a pajé tia Hilda, ela também tinha morrido.
Segundo o seu Catito:
a mãe d’água é muito braba e por isso nós não gosta de andar com crianças lá para a cachoeira do Bacaba, porque lá tem muito encanto.
Os indígenas Tembé, da região do Guamá, têm muito medo da mãe d’água, principalmente os mais velhos, eles têm muito cuidado com as crianças para não irem fora de hora para rios e igarapés, porque ela, a mãe d’água, é um ser encantado que mora nas águas dos rios, lagos e igarapés e se a pessoa for no horário que esse ser sobrenatural está no porto tomando banho, ela faz mal para a pessoa. De acordo com o relato dos mais velhos, a mãe d’água não gosta que perturbem quando ela está lavando as coisas dela ou tomando banho. Por causa de muitos casos narrados e vividos por indígenas Tembé do Guamá, de que a mãe d’agua flecha, olha, ou leva a sombra de uma pessoa, que eles têm medo e respeito por esse ser encantado.
As viagens na cidade encantada no fundo do rio
Sou Adriana de Sousa Lima e em conversa com minha mãe, hoje já falecida, ela me disse que nossos antepassados eram indígenas, mas não sabia de que povo, pois viera muito nova de sua terra no interior do nordeste cearense. Em pesquisas, a partir do contato com meus parentes, que ainda estão no Ceará, na cidade conhecida como Coreaú, identifiquei minha etnia, sou ascendente do povo Tabajara, que estão presentes no Ceará e na costa litorânea da Paraíba.
Hoje, sou residente na Aldeia São Sebastião do Povo Arapium, mas minha etnia é Tabajara, assim me autodeclaro, pautada na convenção 169 da OIT[3]. Sou professora da área de Linguagens, mestranda do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA. Sempre tive interesse em estudar as narrativas que tratam dos seres encantados que fazem parte da cosmologia dos povos indígenas e não indígenas da região do Rio Arapiuns, principalmente do Povo Arapium e de minha aldeia adotiva, São Sebastião, na qual moro desde 2006.
A narrativa expressa nesta Escrita Coletiva foi contada pela Sra. Maria Edila dos Santos, mais conhecida como Domingueira, uma senhora que é conhecida por todos na Aldeia Tucumã Açú, local onde ela mora, localizado no Rio Arapiuns, município de Santarém, no Pará. Dona Domingas é uma puxadeira[4] de mão cheia de mulheres grávidas e já realizou vários partos. Ela nasceu em 02 de junho de 1946 e hoje encontra-se aposentada.
Sua narrativa é sobre a “as viagens na cidade encantada no fundo do rio”. Segundo a narradora[5], ela visitou, em sonho, por várias vezes, a cidade encantada: era a cidade dos botos. Lá, ela via muitas coisas, frutas, festas, foi noiva, apanhou e tinha uma moça que lhe acompanhava, era uma espécie de guia, que dizia o que ela tinha que fazer.
Andei muito pelo fundo. Eu vi se matarem, era muito sangue e, andei com uma moça, era loura. Ela não os deixava se encostarem comigo. Me davam comida, banana, tacacá, tudo me davam lá no fundo, mas a moça dizia que não era para mim comer. Eu ia em festa, via dançarem, eu só nunca dancei, porque a moça não deixava, e fui noiva pra casar. Arrumei um noivo lá e ele queria já casar comigo. Quando foi no dia do casamento, que ele foi levar roupa pra mim, pra mim vestir, aí eu não vesti. Aí ele veio muito bravo comigo, proguntou[6] se eu já tinha me vestido, me arrumado. Aí eu disse que não, que eu não ia casar não! Que eu era casada. Ele disse que eu não era casada, eu disse que eu era casada, que o meu marido tinha ficado em casa e eu não casava mesmo. Ai ele me bateu muito e disse que era pra mim vim mebora[7] de lá. Aí eu vim mebora com a moça. Que eu me recordei, eu estava toda duída[8]. Quando contei pro Valdemar, meu esposo, ele não acreditou, dizia que era sonho, “é isso é sonho que tu sonha”, mas eu digo: “mas não é Valdemar!” Que me judiavam muito, me batem muito e eu passava muito mal e, se não fosse um curador, eu acho que tinham até me matado logo. Aí é uma ponta, aí é uma cidade deles. Aqui bem defronte, aqui da Vila, é uma cidade encantada deles, ali pra cabeceira, já é uma vila. Prá lá que eu andei com a moça, já é assim... já tem, assim, luz, ponte, assim já é vila. Prá lá, assim, já tinha ponta de mato. Lá nesta ponta de mato que, pra lá da cabeceira, que eu vi se matarem, um furou o outro perto de mim, outro gemia, ai outro rolava. Era muito sangue, aí foi aí que a moça saiu de mim. Ai, fiquei sozinha, fiquei com medo. Aí eu fui me embora. Quando cheguei lá na frente, ela tava lá no todo do pau me esperando, aí ela disse assim: “o que aconteceu?” aí eu disse: “olha, eu não sei. Ele matou o homem, tava lá rolando, o outro”. Aí nós viemos embora, aí ela disse: “vamos por aqui”. Aí voltemos e, quando nós cheguemos bem pra cá, de lá da Vila, bem pra cá, aqui pra ponta, ele já tava lá na frente me cercando de novo. O outro já tinha ficado. E, que quando eu me recordava, eu tava já era aqui em casa. Eles eram encantados. Eles são encantados, são botos, mas eles são encantados.
Arenz (2000) ressalta:
Os encantados dos fundos moram, como o nome indica, dentro da água ou em lugares de destaque perto dela, por exemplo numa praia ou numa rocha ao longo da beira. No rio muito deles povoam ‘cidades subaquáticas’, chamadas de encante, cidade encantada ou reino encantado (p. 88).
Essa história tornou-se para os indígenas uma verdade incontestável e respeitada por todos, inclusive para a geração mais recente. Os olhos de dona Domingas, ao contar suas viagens ao fundo do rio, brilhavam; pela sua expressão facial, dava para imaginar como era aquela cidade, fazia com que as pessoas que estavam a ouvir, sentirem-se maravilhadas e respeitarem a moradia dos botos encantados. A Ponta da Aldeia Tucumã Assú, segundo os moradores e indígenas mais antigos da Aldeia Tucumã Assú, é uma ponta encantada, pois embaixo dela moram os botos, lá é a cidade dos botos e todos têm que ter muito respeito.
Na verdade, existem alguns lugares com encantes, assim como a ponta, uma vez que a Aldeia de Tucumã Assú está localizada as margens do Rio Arapiuns, e, por isso, dos mais velhos às crianças, têm respeito por esses lugares, temem sofrer punições, que os encantados possam fazer mal a eles.
O surgimento da festa da menina moça (Wyra uhaw)
O povo Tembé da Terra Indígena Alto Rio Guamá, região do rio Gurupi, ainda possui um grande respeito pela natureza e os encantos que ela possui, isso é representado através das narrativas contadas pelos anciões das aldeias. Quando falamos dos donos da floresta e dos donos das águas, temos um grande respeito com as tradições do nosso povo. Aqui neste trabalho, eu, Gleyce Patrícia Tembé, indígena da etnia Tembé, da região do Gurupi, professora, mestranda do Mestrado em Educação Escolar Indígena da UEPA, residente na aldeia Cajueiro, no município de Paragominas, no Pará, venho apresentar a narrativa que fala como surgiu o ritual da menina moça Tembé (Wyra uhaw[9]) conhecido como o moqueado da menina moça.
Os Autores da narrativa são dois professores da aldeia Teko-Haw, um é o Professor Leosmar Tembé, conhecido com Txina’i, formado na Licenciatura Intercultural Indígena, e o outro é o professor Osmael Tembé, formado no Magistério indígena, um é filho e o outro é neto do pajé Chico rico Tembé, conhecido como Patxico Tembé; ele era um ancião que conhecia a cultura Tembé, por isso repassava os seus conhecimentos para os filhos e netos, então um dos ensinamentos que ele deixou foram as narrativas que ele sabia; e hoje seus filhos e netos continuam repassando esse conhecimento para as futuras gerações Tembé.
O surgimento do moqueado da menina moça Tembé começa com a História de dois irmãos. Tudo começou quando um parente indígena Tembé, ou seja, um homem, encontrou uma comidia[10] aonde vários pássaros comiam a fruta, arara, papagaio, ararajuba, tucano etc. Então, esse parente era só ele que sabia da comidia dos pássaros, ele ia pra lá de manhã e trazia muito pássaros, à tarde era a mesma coisa, todo dia era a mesma coisa, ele trazia vários pássaros. Mas, certo dia, o irmão dele pediu pra ele ensinar aonde ficava a comidia de pássaros. Ele falou para o irmão: “não posso lhe dizer, porque você vai matar os pássaros, pois não são só os pássaros que comem lá, existem outros animais que comem lá, como a onça do vento”. O irmão exigiu muito, até que ele o levou até aonde ficava a árvore da comidia do pássaro. Ele disse: “é aqui!” A tocaia já estava pronta, o irmão dele subiu e ficou esperando os pássaros, e outro irmão voltou para a aldeia. Quando deu meio dia, nada do irmão chegar, o outro irmão começou a ficar preocupado, porque já tinha passado do horário dele chagar na casa. Ele imaginou que o seu irmão flechara a onça do vento; se ele mexera com ela, nessa hora, não estaria mais com vida. Então, ele resolveu ir lá olhar o irmão. Chegando lá, de longe ele olhou em cima do galho da comidia, a tocaia estava toda bagunçada; quando ele chegou em baixo da fruteira, ele olhou e não viu o irmão dele, ele viu apenas vestígios de sangue até no buraco bem pequenininho de um formigueiro. O irmão retornou para a aldeia, quando chegou lá, contou apenas para o pajé o que tinha acontecido com o irmão dele, ele disse que o irmão dele tinha sido comido pela onça do vento, o pajé pediu pra ele levá-lo até o local. Ao chegar no buraco da formiga, o pajé fez um cigarro de tawari[11] e fumou, de repente, o buraco da formiga se transformou em um novo mundo, ou seja, um mundo encantado. Então, eles entraram nesse mundo encantado e foram até uma casa, assim foi criada a ramada (que é uma casa grande aonde acontece todos os rituais, reuniões, encontro, e muitas outras atividades). De longe, eles ouviam as pessoas cantando, eles foram até lá aonde o pessoal estava cantando, olharam em cima do moquém (um giral feito de varas em cima do fogo) e lá estava o irmão desaparecido, estava todo despedaçado e todo moqueado (assado). As pessoas que ali estavam pulavam ao redor e cantavam músicas, elas estavam fazendo o moqueado da menina moça. Depois disso, ele retornou para a casa dele e falou para todos que não tinha mais como trazer o irmão dele, porque lá era outra vida era a vida dos encantados. Assim, eles viram e aprenderam as músicas e como eles faziam, assim, hoje quando vão fazer o moqueado da menina moça, os indígenas Tembé vão caçar no mato, eles matam somente os animais escolhidos e o que é necessário para fazer o ritual, lá na outra vida toda a comunidade estava brincando os rapazes e moças estavam pulando juntos. Desta forma, o povo Tembé aprendeu a fazer o moqueado da menina moça (Wyra uhaw).
O pajé brabo
Sou Raiza Macuyama Silva, indígena da etnia Munduruku, nascida na cidade de Itaituba, no Pará, formada em Licenciatura Plena em Letras, mestranda no PPGEEI, resido atualmente na cidade de Jacareacanga no sudoeste do Pará e a narrativa contada aqui foi relatada pelo senhor Domingos Akay Munduruk, 55 anos, indígena da etnia Munduruku, nascido na aldeia Missão São Francisco no Rio Cururu, residente na Aldeia Vila Nova do Rio das Tropas desde o ano de 2013, onde é vice capitão da comunidade[12].
O senhor Domingos Munduruku narra sobre as várias situações em que o pajé brabo aparece e as coisas que acontecem. Para o povo Munduruku existem dois pajés, o pajé do bem e o pajé brabo. O pajé do bem é o que faz curas e cuida da aldeia, faz rezas e tira maldições e faz somente coisas boas; já o pajé brabo faz coisas ruins, mata, traz doenças, encanta pessoas para sumirem, entre outras coisas ruins.
Contou o senhor Domingos, que em um domingo eles saíram para caçar, ele, o filho dele, o compadre e o filho do compadre. Foram caçar a uns 25 km longe da aldeia, saíram às 5:00 horas e chegaram às 10:00. Perto de uma grota, começaram a fazer o barraco para dormir à noite, pois ainda faltava muita mata para andar. Ao terminar o barraco, foram banhar na grota e comer, arrumaram as redes para descansar, quando escureceu. Todo mundo já estava deitado, de repente, ouviram barulhos estranhos, as coisas caindo, as redes balançando. Ele, então, pegou a lanterna e não via nada, nem os seus companheiros não conseguiam ver nada. Todos ficaram preocupados, parecia bicho, mas não dava para ver nada. Deixaram uma lanterna ligada, mas do nada, a lanterna apagava, parecia ser muitos bichos, pois era barulho para todo lado, ele pegou sua espingarda e falou: “pode vir, pois eu não tenho medo, eu conheço quando é pajé brabo, mas eles têm medo de mim, por isso não aparecem!” Segundo ele, esse mesmo pajé já aparecera algumas vezes na sua casa, porém, tem medo dele e não tem coragem de enfrentá-lo; algumas vezes seu filho já foi encantado e saiu correndo para o mato, porém, em todas as vezes, eles conseguiram pegá-lo e assim conseguiram tirar o encantamento do menino, pois o mesmo possui outro filho, que é pajé do bem e sabe tirar esses encantamentos. O mesmo aconteceu com a filha do sobrinho dele, uma menina de quatro anos, estava com a mãe dela na beira do rio lavando roupa, quando a mãe dela virou para deixar uma roupa no varal, a menina desapareceu no rio muito rápido, ninguém nunca encontrou o corpo e nem animal grande por perto, foi coisa de pajé brabo também, que leva as crianças. Segundo os indígenas mais velhos, esse pajé brabo tem uma aldeia muito grande, por isso várias pessoas são encantadas e levadas para essa comunidade. Ele é muito rico e vive no meio do povo Munduruku. Na maioria das vezes, ele encanta crianças, mulheres e velhos, porque são mais fáceis de serem levadas, depois que chegam nessa comunidade, nunca mais conseguem sair de lá, pois não fazem ideia de onde estão.
O boto cor de rosa
Sou a professora Antonia Negrão, professora da Universidade do Estado do Pará, atuo na formação de professores indígenas e não indígenas, na área de linguagens. Atualmente, estou na coordenação do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA. Minha experiência com o encantado vem desde a minha infância, sou filha de ribeirinhos, das ilhas de Abaetetuba, cidade na região do Baixo Tocantins, do estado do Pará. A minha infância ribeirinha me permitiu viver todas as experiências que um ribeirinho na Amazônia vive: o convívio com o rio, com a fauna e com a flora amazônidas; a inserção no mundo fantástico e encantado das narrativas orais, pautadas em linguagens carregadas da plasticidade, própria do caboclo paraense. Por tudo isso e pela natureza da infância de uma mulher nortista, ribeirinha da década de 1980, compreendi desde cedo que nossas crenças se materializam no narrar e no experienciar dos seres encantados de nossos rios e matas. Assim, a narrativa que mais permeou o meu imaginário e que se manteve entranhada em minha pele e no meu sentipensar (Arias, 2010) foi narrada por minha mãe, uma mulher verdadeiramente ribeirinha, que fazia do narrar a essência para o ser.
Durante os anos iniciais de minha infância, até os dez anos de idade, todos os meses de julho, minha mãe, meus nove irmãos e eu, nos deslocávamos da cidade de Abaetetuba para uma ilha do município, chamada Maracapucu. Nessa ilha, meu pai trabalhava em uma olaria, lugar onde se fabricavam telhas e tijolos de barro. Nesse período, vivíamos todas as mais fantásticas experiências que só um ribeirinho é capaz de viver. Dentre todas as aventuras vividas, a que mais nos marcava, era a reunião, no final da noite, à luz de uma lamparina[13], para ouvir as narrativas dos seres encantados da Amazônia. Minha mãe contava que, em dias de festa, o boto cor de rosa se transformava em homem e ia dançar com as mulheres para encantá-las. Ele se transformava em um homem muito bonito e usava sempre roupas brancas e um chapéu na cabeça. Depois que ele seduzia as mulheres, ele sumia, como num passe de mágica. Nove meses depois, nascia aquela criança, que era chamada de filho do boto. Até hoje existem muitos filhos (as) de boto pelas ilhas de Abaetetuba.
Algumas considerações do narrar coletivo
As narrativas orais e as vivências do encantado são temáticas entranhadas na constituição dos povos da Amazônia. Indígenas e não indígenas experienciam, muito cedo, ainda no ventre materno de suas mães, as experiências ouvidas sobre as histórias dos seres encantados, que permeiam o universo cultural e linguístico de todo aquele que sente, pensa e vive a essência do ser coletivo, que se constitui, sobretudo, em rodas de narrar e ouvir as narrativas dos povos amazônidas. Assim, as experiências narradas neste texto, escrito coletivamente, por mulheres da Amazônia, representam o viver de letramentos culturais que ainda hoje, se desejam efervescentes, pois demonstram toda a reexistência das mulheres aqui representadas, as indígenas e a ribeirinha.
Notas
[1] Os encantados são seres que se manifestam “ora para assustar os humanos, ora para guiá-los, ora fazem revelações de cura” (Gondim, 2016).
[2] Pessoa indigena responsável pela realização e condução dos rituais mágicos de cura, que tem autoridade para invocar e controlar os espíritos e pode curar ou benzer.
[3] A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho trata sobre Povos Indígenas e Tribais e foi adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989 e entrada em vigor internacional em 5 de setembro de 1991.
[4] Expressão típica da região amazônica, representa aquela pessoa que utiliza as mãos para resolver problemas relacionados à luxações nos braços, nas pernas ou nas costas.
[5] A narradora possui um modo característico de falar, próprio do caboclo amazônida. Com a palavra “caboclo” se indicam os não indígenas ou os campesinatos históricos da Amazônia brasileira. Eles trabalham principalmente como seringueiros, pescadores e pequenos agricultores próximos às margens dos rios.
[6] No falar Amazônico, forma variante de perguntou.
[7] Eu vir embora.
[8] Forma do verbo doer: doída.
[9] De acordo com o professor Lesosmar Tembé (Txina’i), indígena do povo Tembé-Tenetehar, apesar da narrativa ter como personagens principais dois homens, a vivência dos dois personagens principais no mundo dos encantados, é o que dá conta da origem do ritual de inserção das meninas na vida adulta.
[10] Um pé de fruteira.
[11] Cigarro artesanal, utilizado por indígenas da Amazônia, para a limpeza espiritual dos ambientes; combate energias negativas e amplia a sensibilidade mediúnica.
[12] De acordo com Lenilson Paigõ Munduruku, indígena da etnia Munduruku de Jacareacanga/Pará e secretário de Assuntos Indígenas da Prefeitura Municipal de Jacareacanga/Pará, o vice-capitão da comunidade é uma liderança indígena, que tem a funçao de organizar, representar e manter as atividades produtivas da aldeia.
[13] Pequena lâmpada que fornece luz de pouca intensidade, composta de um reservatório para líquido combustível (azeite, querosene etc.) no qual se mergulha um pavio que traspassa uma pequena rodela de madeira e se acende na outra extremidade.
Referências
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Zumthor P., Performance, recepção, leitura, EDUC, São Paulo 2000.
As autoras
Angélica dos Reis Tembé pertence ao povo indígena Tembé-Tenetehar, da Terra Indígena Alto Rio Guamá; é moradora da Aldeia São Pedro, que fica localizada na Terra Indígena Alto Rio Guamá, próximo ao município de Santa Luzia do Pará. Desde o ano de 2004 atua como professora na Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio – Anexo Pira, localizada na Aldeia Pira, Terra Indígena Alto Rio Guamá. Atualmente atua como professora de língua portuguesa e arte para as turmas do 6º ao 9º dos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. É mestranda do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA.
Adriana de Sousa Lima é professora com formação em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Oeste do Pará e pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e pós-graduada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) – Campus de Santarém em Língua e Literatura desde 2009. Trabalha na educação desde 2002 no município de Santarém, no Estado do Pará. Reside na Aldeia São Sebastião do Povo Arapium. Sua etnia é Tabajara, conforme autodeclaração, pautada na convenção 169 da OIT. É mestranda do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA.
Gleyce Patrícia Tembé pertence ao povo indígena Tembé-Tenetehar, da Terra Indígena Alto Rio Guamá, Região do Rio Gurupi. Formada na área de Ciências Humanas e Sociais pela UEPA. Atualmente atua como professora do ensino modular nos anos finais do Ensino Fundamental, na disciplina de História, nas várias aldeias da região do Gurupi/Pará. Mestranda do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA.
Raiza Macuyama Silva nasceu em Itaituba/Pará e vive atualmente em Jacareacanga/Pará. É indígena. Formada em Letras. No ano de 2014 começou a trabalhar como professora de Língua Portuguesa em escolas indígenas do município onde reside. Atualmente, atua na Educação de Jovens e Adultos, em uma escola municipal na cidade de Jacareacanga. Mestranda do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena da UEPA.
Antonia Zelina Negrão de Oliveira é Doutora em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (DINTER USP/UEPA). É professora do Departamento de Educação Escolar Indígena da Universidade do Estado do Pará – atua na formação de professores indígenas e não indígenas. É professora permanente e coordenadora do Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena. Membro do Geia Indígenas na Amazônia (GEIA).