Saberes dos povos indígenas, etnoconhecimentos e currículos escolares na Amazônia: tecituras de uma Escrita Coletiva Intercultural | Indigenous Peoples Knowledge, Ethno-knowledge, and School Curricula in the Amazon: Weaving an Intercultural Collective Writing

DOI: 10.5281/zenodo.12773081 | PDF

Educazione Aperta 16/2024

Resumo: Este trabalho tem como temática a educação entre os povos Munduruku, que tem suas comunidades/aldeias localizadas na região Amazônica do Brasil. Apresentamos alguns elementos das tradições culturais, o modo de vida, os desafios enfrentados e as perspectivas futuras desse grupo étnico em relação aos etnoconhecimentos no currículo escolar. Tem como objetivo tecer reflexões coletivas sobre os saberes indígenas e os etnoconhecimentos, considerando esse conjunto de conhecimentos, saberes e práticas desenvolvidas pelos Munduruku ao longo de gerações, e que precisam ser garantidos nos currículos escolares de suas escolas. Ao incorporar os etnoconhecimentos nos currículos escolares da Amazônia, as instituições de ensino reconhecem a importância desses saberes locais, promovendo uma educação mais inclusiva e culturalmente sensível aos projetos de educação de cada povo indígena. Os procedimentos metodológicos foram norteados pela prática da Escrita Coletiva, como um processo de criação deste texto, de forma colaborativa. A elaboração envolveu a participação ativa de autores Munduruku, cada um trazendo suas ideias, conhecimentos e perspectivas para enriquecer esta produção amazônida.

Palavras-chave: saberes indígenas, etnoconhecimento, currículo, Escrita Coletiva Intercultural, Munduruku.

Abstract: This work focuses on education among the Munduruku people, whose communities/villages are located in the Amazon region of Brazil. We present various elements of their cultural traditions, way of life, challenges faced, and future prospects for this ethnic group in relation to ethno-knowledge in the school curriculum. The aim is to engage in collective reflections on indigenous knowledge and ethno-knowledge, considering the set of knowledge, skills, and practices developed by the Munduruku over generations, which need to be ensured in the school curricula of their schools. By incorporating ethno-knowledge into the school curricula of the Amazon, educational institutions recognize the importance of these local knowledge systems, promoting a more inclusive and culturally sensitive education for the educational projects of each indigenous community. The methodological procedures were guided by the practice of Collective Writing, serving as a collaborative process in creating this text. The development involved the active participation of Munduruku authors, each contributing their ideas, knowledge, and perspectives to enrich this Amazonian production.

Keywords: Indigenous knowledge, ethno-knowledge, curriculum, intercultural collective writing, Munduruku.

Introdução

A interconexão entre os saberes indígenas e o sistema educacional contemporâneo é um campo de estudo complexo e enriquecedor, que destaca a coexistência de tradições ancestrais e práticas pedagógicas formais. No âmago desse diálogo, encontramos a dicotomia entre a tradição oral e a escrita, representando não apenas diferentes formas de transmissão de conhecimento, mas também perspectivas singulares sobre a educação para a vida (Tedeschi, 2016).

Ao explorar essa temática, mergulhamos em um universo multifacetado, onde as vozes das comunidades indígenas ecoam através de narrativas transmitidas oralmente, ao passo que as instituições educacionais buscam integrar esses saberes tradicionais em um contexto cada vez mais letrado.

Neste trabalho, pretendemos lançar luz sobre a dinâmica desse encontro entre tradição e modernidade, entre oralidade e escrita, delineando um panorama que convida à reflexão sobre como a valorização dos saberes indígenas pode enriquecer não apenas a educação formal, mas também a experiência de vida como um todo.

Os etnoconhecimentos representam a soma desses saberes e de práticas culturais desenvolvidas ao longo de gerações por diferentes grupos étnicos. Entre esses grupos, os povos indígenas destacam-se como detentores de uma riqueza extraordinária de conhecimentos que permeiam suas relações com o ambiente, a espiritualidade, a medicina tradicional, a agricultura, a arte e a organização social. Esses saberes, muitas vezes transmitidos oralmente, são fundamentais para compreender a complexidade e a diversidade das culturas indígenas ao redor do mundo.

A relação dos povos indígenas com a natureza é central em seus etnoconhecimentos. O respeito pelo meio ambiente, a compreensão profunda dos ciclos naturais e a utilização sustentável dos recursos são características marcantes. Nessa perspectiva, a biodiversidade é encarada não apenas como um conjunto de recursos, mas como uma teia interconectada de relações, onde os seres humanos são parte integrante e responsável por sua preservação.

Além disso, os etnoconhecimentos indígenas abrangem práticas medicinais ancestrais, que muitas vezes se baseiam em plantas e ervas locais. Essa medicina tradicional não apenas trata doenças físicas, mas também considera o equilíbrio espiritual e emocional, reconhecendo a interconexão entre corpo e alma. Esses conhecimentos são transmitidos de geração em geração, preservando as técnicas e os rituais que compõem essa forma única de cuidado com a saúde.

A arte também desempenha um papel crucial nos etnoconhecimentos indígenas, refletindo a identidade cultural e a cosmovisão dos povos originários. Por exemplo, a pintura, escultura, música e dança são expressões artísticas que carregam consigo narrativas ancestrais, mitologias e a memória coletiva das comunidades. Cada manifestação artística é uma forma de preservar e transmitir a história e os valores desses povos.

Assim, a organização social dos povos indígenas é permeada por seus etnoconhecimentos, que regulam desde a distribuição de tarefas até a resolução de conflitos. Os saberes tradicionais orientam a convivência comunitária, promovendo a solidariedade, a cooperação e a preservação da identidade cultural.

No entanto, é importante destacar que os etnoconhecimentos e as culturas indígenas enfrentam desafios significativos, incluindo a perda de territórios, a ameaça à biodiversidade, a discriminação e a falta de reconhecimento de seus direitos. A preservação e valorização desses saberes são essenciais para a construção de sociedades mais justas e sustentáveis.

Em suma, os etnoconhecimentos dos povos indígenas representam um patrimônio cultural inestimável, que não apenas enriquece a diversidade humana, mas também oferece lições valiosas para enfrentar os desafios contemporâneos, promovendo uma relação mais equilibrada e respeitosa entre seres humanos e o meio ambiente.

Como instrumento colaborador nesse desafio está o currículo escolar, um documento fundamental que orienta o processo educativo, delineando os conhecimentos, competências e habilidades que os estudantes devem adquirir ao longo de sua jornada acadêmica. Todavia, a tradicional abordagem curricular muitas vezes negligenciou a riqueza e a diversidade dos saberes culturais presentes nas sociedades indígenas. Por isso, a inclusão de etnoconhecimentos no currículo emerge como uma abordagem inovadora e inclusiva, reconhecendo a importância de integrar os conhecimentos tradicionais das comunidades no ambiente educacional. Integrar esses conhecimentos no currículo escolar não apenas reconhece a diversidade cultural, mas também promove um diálogo intercultural enriquecedor.

A inserção de etnoconhecimentos pode ocorrer em diversas disciplinas, como história, geografia, ciências, língua portuguesa, entre outras. Por exemplo, nas aulas de história, é possível abordar a história local, destacando as contribuições e perspectivas dos povos indígenas. Em geografia, a compreensão dos modos de vida sustentáveis pode ser explorada, promovendo uma consciência ambiental mais profunda. Nas ciências, os conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais, por exemplo, podem enriquecer o estudo da botânica.

A inclusão de etnoconhecimentos no currículo não apenas valoriza a herança cultural das comunidades, mas também fortalece a autoestima dos estudantes, proporcionando-lhes um senso de identidade e pertencimento. Além disso, esse enfoque contribui para a construção de uma consciência crítica sobre as desigualdades culturais e sociais sofridas pelos povos indígenas ao longo da história do Brasil.

Para implementar efetivamente os etnoconhecimentos no currículo, é necessário envolver as comunidades indígenas, respeitando suas tradições e garantindo uma abordagem colaborativa. Formações continuadas para os professores, materiais didáticos específicos e práticas pedagógicas interculturais que promovam a participação ativa dos alunos são fundamentais nesse processo.

Em síntese, a incorporação de etnoconhecimentos no currículo escolar representa um passo significativo em direção a uma educação intercultural e alinhada com o projeto de educação de cada povo indígena. Desse modo, ao reconhecer e valorizar os saberes dessas comunidades, proporcionamos uma educação mais plena, que prepara os alunos para o bem viver indígena, mesmo em sociedades pluralistas e interconectadas.

Saberes indígenas e educação para a vida: entre a tradição oral e a escrita

Os Munduruku também chamados Mundurucu, Weidyenye, Paiquize, Pari, Maytapu e Caras-Pretas, e autodenominados Wuyjuyu ou Wuy jugusão, são povos indígenas pertencentes à família lingüística Munduruku, do tronco Tupi. Sua autodenominação é Wuy jugu e, segundo os saberes difundidos oralmente entre alguns anciãos, a designação Munduruku, como são conhecidos desde fins do século XVIII, era o modo como estes eram denominados pelos Parintintins, povo rival que estava localizado na região entre a margem direita do rio Tapajós e o rio Madeira. Esta denominação teria como significado “formigas vermelhas”, em alusão aos guerreiros Munduruku que atacavam em massa os territórios rivais.

Para pensarmos e analisarmos os saberes tradicionais do povo Munduruku, e falando do povo Munduruku Cara-Preta, do baixo Tapajós, precisamos contextualizar seu processo histórico. O povo Munduruku Cara-Preta, encontram-se no Município de Aveiro, no Pará, na aldeia Escrivão, margem esquerda do rio Tapajós; não são falantes da língua materna, porque esse povo sofreu etnocídio, por conta da colonização que os obrigou a falar a língua portuguesa como primeira língua.

A professora Maria de Nazaré Cardoso Marques trabalhou com os alunos a história dessa comunidade, entrevistando em 03-11-2015 dona Raimunda, moradora com mais de cem anos. Então ela era a mais idosa e hoje é falecida. Ela falou que na comunidade de Escrivão eram Francisca Apiaká, Francisca Munduruku e Erculano Cara-Preta. Eram essas três famílias que estavam neste território. Na época ela era muito criança e falante da língua Munduruku. Morava com Chiquinha Munduruku, nessa época as casas eram estilo maloca coberta de palha.

Entretanto, foi somente a partir de 1997, com o movimento de autoafirmação dos indígenas no baixo Tapajós e Arapiuns, que realmente se firmaram como aldeia Escrivão do Povo Munduruku Cara-Preta. Desde esse período, a comunidade trabalha para o fortalecimento da cultura Munduruku Cara-Preta.

Há grandes dificuldades de restaurar esse processo de fortalecimento cultural do povo Munduruku Cara-Preta. Dentre seus saberes tradicionais estão: as histórias orais; a produção de materiais como paneiros, japás, peneiras, frutos do teçume das palhas fibras; a arte da caça e pesca; os rituais de agradecimentos; a produção do tarubá; a medicina caseira; a produção da farinha; as reuniões comunitárias e as assembleias coletivas etc.

Em relação aos Munduruku do Alto Tapajós, pela proximidade com a Terra Indígena, o município de Jacareacanga é um local que abriga muitos Munduruku e suas famílias, além de ser o lugar onde resolvem seus problemas de documentação, acesso a benefícios sociais e compras de produtos.  A maioria das aldeias está localizada no rio Cururu, afluente do Tapajós, região esta que ficou conhecida como Mundurukânia, citada no mito de origem. Atualmente, os Munduruku encontram-se em intensa luta para garantir a integridade de seu território, ameaçado pelas pressões das atividades ilegais dos garimpos de ouro, os projetos hidrelétricos e a construção de uma grande hidrovia no Tapajós.

A riqueza da cultura Munduruku é extraordinária, incluindo um repertório de canções tradicionais de musicalidade e poesia incomum, que versa sobre relações do cotidiano, frutos, animais etc. A cosmologia apresenta narrativas que incluem conhecimentos dos astros, das constelações e da Via Láctea, chamada kabikodepu, em que são identificadas as estrelas que a compõem[1].

Mesmo com as diferenças históricas de contatos e de conflitos históricos com a sociedade nacional, ressaltamos que a educação indígena Munduruku (entendida como sistema tradicional e específico de educar) ocorre bem antes da chegada da escola; pois há muito tempo os povos indígenas vêm praticando e valorizando os seus conhecimentos milenares, que são repassados de seus avos para seus filhos e netos, sendo assim utilizados no dia a dia de cada povo indígena.

Esses saberes vêm trazendo riquíssimos conhecimentos dos povos que vivem na floresta: remédios caseiros para se proteger de doenças infecciosa; curas de doenças com raízes e com plantas medicinais; curas através de pajés, puxadores e parteiras; banhos de plantas para crianças recém-nascidas para se proteger de diversas doenças trazidas pelo ser humano; defumação de aldeias contra os perigos; contação de histórias pelos anciões; e vários outros conhecimentos que foram herdados pelos pais ou avos, que muitos povos chamam de “escola para a vida”.

Esses conhecimentos tradicionais são transmitidos através da observação e da escuta dos anciões em rodas de conversa, que todo dia têm que ser praticadas como uma aula para que as crianças tenham o domínio de certo assunto. Em particular, por meio da oralidade, os anciões expõem um material para que todos possam compreendê-lo; após a contação, são selecionados os que irão fazer a exposição ou colocar em pratica.

Os saberes Munduruku repassados por avos, pais e tios incluem: confeccionar arco e flechas; conhecer os tipos de plantas medicinais e seu uso; a pesca artesanal; plantar na roça; a contação de lendas Munduruku; os cânticos tradicionais; o artesanato Munduruku; e valores como o respeito com os mais velhos.

Os saberes tradicionais são saberes que complementam a vivência sociocultural de um povo, de uma sociedade. Os povos tradicionais indígenas carregaram por séculos os saberes de suas vivências, de suas experiências, que criam a identidade específica de cada povo. Esses saberes nos ensinam a valorizar o processo de construção social, cultural, educacional de cada povo indígena. Nos proporcionam um sentimento de pertencimento como sujeito histórico nas sociedades indígenas. Esse pertencimento nos empodera e fortalece a vivência da nossa cultura indígena.

Esses saberes indígenas, muitos anos atrás, eram passados, esclusivamente, de forma oral. Embora, hoje, ainda tenhamos essa prática de transmissão dos saberes através da oralidade, há também novas práticas de compartilhamento desses saberes. Falamos de novas práticas porque já encontramos muitos desses saberes escritos em cartilhas, livros, trabalhos científicos produzidos pelos próprios indígenas.

Apesar dos avanços, desafios persistem, como a falta de recursos adequados, a marginalização socioeconômica e a necessidade contínua de combater estereótipos e preconceitos. A promoção da educação indígena requer um compromisso contínuo com a justiça social, o respeito pelos direitos humanos e o reconhecimento das contribuições únicas e valiosas das culturas indígenas para a riqueza da diversidade global.

Sobre a Escrita Coletiva Intercultural Crítica

A elaboração textual a partir da Escrita Coletiva é um processo em que várias pessoas contribuem para a criação de um texto de forma colaborativa. Essa abordagem envolve a participação ativa de diferentes indivíduos, cada um trazendo suas ideias, conhecimentos e perspectivas para enriquecer a produção. Entendemos aqui como Escrita Coletiva Intercultural Crítica um movimento intelectual de produção compartilhada, que transcende fronteiras culturais, promovendo uma abordagem colaborativa e reflexiva sobre as complexidades dos saberes ancestrais indígenas. Essa prática não se limita apenas à produção textual, mas engloba uma perspectiva mais ampla que busca desconstruir estereótipos, valorizar as diferenças e construir pontes de entendimento entre diferentes culturas.

No cerne da Escrita Coletiva Intercultural Crítica está a ideia de que a diversidade cultural não deve ser apenas reconhecida, mas celebrada e entendida em profundidade, com todas as suas tensões e contradições. Ela se torna uma ferramenta para desafiar visões unilaterais e para construir narrativas que reflitam a riqueza e a complexidade do mosaico cultural global.

Nesse processo colaborativo, ocorre um encontro de escritores de diferentes culturas, porém, com vivências e percepções que convergem para a produção de conhecimentos que transcendem as fronteiras culturais convencionais. A interculturalidade se manifesta não apenas no conteúdo dessas produções, mas, também no próprio ato da escrita, onde vozes diversas se entrelaçam para contar histórias multifacetadas, com conexões peculiares ao objeto da produção. Essa pluralidade de perspectivas enriquece o processo criativo, proporcionando uma visão mais holística e autêntica das experiências humanas.

Neste trabalho, a Escrita Coletiva foi realizada a partir de dois aportes. Um primeiro aporte deu-se pela iniciação dos autores, por meio de uma formação sobre a Escrita Coletiva, realizada pela Dra. Mariateresa Muraca. Esta formação nos instigou para o encontro de saberes e vivências interculturais dos autores deste texto com a Educação Escolar Indígena na Amazônia, em especial, no estado do Pará.

No decorrer da formação, com Muraca aprendemos que um dos princípios importantes da Escrita Coletiva é o engajamento de todos, em um círculo dialógico, em que a presença durante o processo de produção sela o compromisso assumido entre todos que dela participam, disponibilizando o corpo como presente/presença ético-política para o encontro.

Dessa maneira, a Escrita Coletiva refere-se ao processo de criação de um texto que envolve a contribuição de várias pessoas. Diferentemente da escrita individual, onde uma única pessoa é responsável por todo o conteúdo, na Escrita Coletiva várias mentes colaboram para desenvolver um texto de maneira conjunta. Isso pode ocorrer em diversos contextos, como projetos acadêmicos, redação de artigos, desenvolvimento de manuais, elaboração de documentos corporativos, entre outros.

Em síntese, como prática formativa tivemos os seguintes momentos de Escrita Coletiva: 1) Conhecimentos prévios sobre a Escrita Coletiva e métodos possíveis. 2) Início do processo de escrita durante os encontros de formação: como estratégia para a escrita do texto, os participantes foram divididos por afinidades temáticas para que cada um/a pudesse contribuir a desenvolver um texto considerando suas vivências e habilidades. 3) No grupo sobre a temática do currículo, nos organizamos por eixos, a partir dos quais definimos a estrutura das seções de escrita. 4) Contribuição da escrita de cada autor considerando suas vivências sobre o tema. 5) Articulação das abordagens afins e conexões internas do texto. 6) Revisão e submissão do texto à avaliação externa.

Os participantes dessa Escrita Coletiva trabalharam em equipe, compartilhando ideias, conhecimentos e perspectivas para criar um documento coeso e enriquecido com as experiências dos autores. A colaboração ocorreu de diferentes maneiras: presencialmente, durante reuniões virtuais e através de ferramentas online que permitiram a edição colaborativa em tempo real.

Saberes científicos e etnoconhecimentos na escola indígena

Desde as primeiras ações de educação formalizada junto aos povos indígenas no Brasil, praticadas ainda nas missões colonizadoras, pode-se perceber a inadequada aplicação de métodos e técnicas educativas que não correspondem aos princípios das culturas indígenas. Tais práticas, de características disciplinadoras e civilizatórias remanescentes do projeto evangelizador dos jesuítas e de outras congregações religiosas, apesar de adquirirem outros propósitos e outras roupagens pedagógicas, ainda são refletidas em vários cenários escolares indígenas, nos quais observa-se a reprodução e a assimilação de conhecimentos e práticas ocidentais.

Nos primeiros projetos de educação, a aplicação da pedagogia em contextos indígenas seguiu as orientações da Ordem dos Jesuítas. Em termos gerais, a educação jesuítica primava pela formação integral, intelectual, física, estética e moral. Como estratégias de ensino cultivavam-se jogos, representações dramáticas, certames etc., que ao mesmo tempo serviam de atração. Para isso também serviam as instalações materiais dos Colégios. Eram atividades que tinham o sentido de disciplinar os alunos nos códigos civilizatórios não indígenas.

A partir da subjugação do Continente, por muito tempo, a educação na sociedade indígena foi praticada pela sociedade nacional brasileira de forma alheia aos seus processos sociais de transmissão de saberes. Haja vista, que há na vida intracomunitária indígena vivências mediadas por regras, símbolos e valores da cultura grupal. Na lógica da educação tradicional indígena não cabe a figura do professor, já que todos são responsáveis na formação de quem necessita apreender os afazeres do cotidiano. Todo conhecimento se constitui a partir das experiências dos mais velhos e pelos ensinamentos acumulados pelas gerações anteriores.

Por isso, a importância da interconexão entre saberes científicos e etnoconhecimentos na escola indígena, como um processo essencial para promover uma educação que respeite e valorize a riqueza cultural e a diversidade de conhecimentos presentes nas comunidades indígenas. Essa abordagem reconhece a importância de equilibrar o conhecimento tradicional transmitido ao longo das gerações com os conceitos científicos modernos, proporcionando uma educação mais contextualizada e significativa.

Os saberes científicos são baseados em métodos de investigação, análise e experimentação mais formais e padronizados. Por outro lado, os etnoconhecimentos são fundamentados na experiência acumulada ao longo do tempo pelos povos indígenas, são transmitidos oralmente e enraizados nas práticas cotidianas, na espiritualidade e na relação harmoniosa com o meio ambiente.

A valorização dos etnoconhecimentos nas escolas indígenas reconhece a sabedoria ancestral presente nas práticas agrícolas, na medicina tradicional, nas formas de organização social, nas manifestações artísticas e nos rituais cerimoniais. Essa abordagem não apenas fortalece a identidade cultural dos estudantes indígenas, mas também contribui para a preservação e revitalização de tradições que, muitas vezes, estão ameaçadas pelo avanço da globalização e pela perda de territórios.

Ao mesmo tempo, a integração dos saberes científicos oferece aos estudantes indígenas a oportunidade de explorar e compreender os fenômenos naturais sob uma perspectiva mais técnica. A combinação dessas duas formas de conhecimento possibilita uma abordagem mais holística e abrangente, conectando o conhecimento tradicional à compreensão científica do mundo ao redor.

A implementação efetiva dessa proposta requer o desenvolvimento de currículos escolares sensíveis às realidades locais e às necessidades específicas das comunidades indígenas. Além disso, é crucial envolver os anciãos e líderes comunitários no processo educacional, permitindo que contribuam com seu vasto conhecimento e orientem a integração dos saberes de maneira respeitosa e autêntica.

A escola indígena, ao adotar essa abordagem integradora, não apenas forma estudantes capazes de compreender a complexidade do mundo contemporâneo, mas também preserva e enriquece a herança cultural, construindo pontes entre tradição e modernidade. A promoção da diversidade de saberes na educação indígena não só fortalece as comunidades locais, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva, que valoriza e respeita a pluralidade de conhecimentos que enriquecem a humanidade.

Da perspectiva eurocêntrica e integracionista, que concebia os indígenas como culturalmente inferiores aos brancos, às conquistas dos povos indígenas por uma educação que atendesse aos seus projetos de vida surgiram aspectos importantes de serem considerados – sobretudo porque a educação indígena apresenta características peculiares e, ao ser articulada à educação escolar, produziu novas configurações e arranjos culturais e políticos.

No percurso histórico da escolarização dos povos indígenas no Brasil, principalmente com as conquistas advindas da Constituição Federal de 1988, percebe-se a necessidade de ajustes qualitativos nas formas de ensino e de educação que são ofertadas no cotidiano das escolas nas aldeias. Haja vista, que a escola é um bem cultural característico da sociedade não indígena, que foi inserida no contexto indígena, na maioria dos casos, sem que estivesse prevista no seu projeto de educação ou que o povo receptor fosse esclarecido de sua função.

Por um currículo específico em escolas indígenas da Amazônia paraense

A partir do movimento indígena de meados da década de 70, que tinha como uma das pautas de reivindicação o direito a processos educacionais específicos e diferenciados, e posteriormente, com as mudanças na Constituição de 1988, foram desencadeados documentos e ações de resistência, que apontavam para uma nova concepção de escola indígena, que deveria ter as seguintes características: comunitária, intercultural, bi/multilíngue, específica e diferenciada (Alencar, 2014).

A construção de uma escola indígena específica, intercultural e de qualidade aponta como princípio a troca dos modelos assimilacionistas pela implantação de

programas de educação escolares que estejam coerentes com a perspectiva do projeto de sociedade de cada povo indígena. Assim a escola pode ser entendida, segundo Tassinari (1992), como um espaço de fronteira, um ambiente de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, de redefinição indentitária dos grupos envolvidos no processo de educação. Na efetivação desse modelo de educação escolarizada em contextos indígenas a garantia do espaço e do papel do professor indígena tornou-se imprescindível.

A escola Indígena Kaba Biwun fica na aldeia Kaba Biorebu, no município de Jacareacanga, no estado do Pará, e foi fundada em 2017 a pedido dos moradores.

Desde quando os professores iniciaram a trabalhar, foram repassados da Secretaria de Educação os componentes curriculares nacionais para todas as escolas do território Munduruku:  matemática, ciências biológicas, história e geografia, física, português, educação religiosa e estudos amazônico. Essas são as partes curriculares que são trabalhadas nas escolas indígenas.

Foi com grande luta dos professores indígenas que foi incluída no currículo a parte diferenciada: língua munduruku, arte munduruku, cultura e identidade, mas é necessário continuar a construir a proposta pedagógica curricular para atender as necessidades das escolas em todo território Munduruku.

No contexto dos Munduruku Cara-Preta, a Educação Escolar Indígena é uma política pública ultimamente muito debatida, dialogada, mas, para que seja não só implantada mas também implementada nos territórios indígenas, precisa ser trabalhada melhor. Ainda temos muitas escolas indígenas em territórios indígenas sem que seja trabalhada a Educação Escolar Indígena. Ter uma escola indígena por si só não significa ter a Educação Escolar Indígena. Por mais que tenhamos professores indígenas, se não trabalharmos a especificidade, a diferenciação, a interculturalidade, o bilinguismo, não teremos uma Educação Escolar Indígena. Infelizmente, é isso que ainda acontece em vários territórios indígenas.

Precisamos ter o conhecimento e colocar em prática as características de uma Educação Escolar Indígena. Ocorre que educadores indígenas ainda trabalhem um currículo e metodologias não indígenas; muitos outros até trabalham conteúdos relacionados às culturas indígenas, mas não fazem o registro no diário de classe e, assim fazendo, não contribuem para a construção de um currículo intercultural para a Educação Escolar Indígena. Mesmo com as orientações que possibilitariam trabalhar uma Educação Escolar Indígena, os professores e os gestores das escolas indígenas têm medo de transgredir suas ações educativas para implementar a Educação Escolar Indígena, que é garantida na legislação.

Nós, educadores, precisamos entender que a Educação Escolar Indígena, para ser efetivada, só depende de nós. Mas teremos que conhecer as bases legais que nos amparam e nos asseguram. Os educadores recebem uma proposta de currículo das Secretarias de Educação, mas não conseguem dialogar para fazer uma análise e inserir objetos de conhecimentos que trabalhem o contexto de sua vivência. Talvez isso aconteça até pelo fato de não conseguirem elaborar seu Projeto Político Pedagógico Indígena (PPPI) – instrumento orientador das ações educativas de uma escola. Sendo um documento fundamental, o PPPI orienta e direciona os trabalhos didáticos e pedagógicos nas escolas indígenas. Fortalece o projeto educativo de um povo indígena.

Mas, se o educador utiliza o currículo enviado sem contextualizá-lo na sua realidade, o torna um currículo vazio, sem significado para o projeto de vida dos educandos. É necessário sabermos analisar e complementar o currículo inserindo os conhecimentos tradicionais, em prol do sentimento de pertencimento e identidade cultural de cada povo indígena – claro, em diálogo com os conhecimentos denominados “universais”. Essa contextualização fortalecerá o trabalho da interculturalidade na Educação Escolar Indígena.

Temos muitos saberes tradicionais que podem ser trabalhados na Educação Escolar Indígena, que contribuirão para a permanência e o fortalecimento cultural e social de cada povo indígena: os rituais de passagem e agradecimentos; as histórias de cada povo; a culinária e as bebidas; as pinturas corporais diversas; a medicina tradicional; as lendas; os instrumentos de trabalhos diários; os trabalhos artísticos e culturais; as práticas de caçar e pescar; a relação com a natureza, etc são conteúdos que podem fazer a diferença em um currículo intercultural.

Como trabalharmos um currículo intercultural? Sabemos da hegemonia dos currículos prescritos, mas precisamos ressignificar nossos currículos, precisamos transgredir com ações que realmente proporcionem um currículo intercultural. E para isso é necessário nos empoderarmos como educadores indígenas da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade.

O nosso território é um campo de estudo para todas as áreas da educação. O território nos apresenta elementos para trabalharmos a interdisciplinaridade: ali encontramos subsídios para trabalharmos em arte (pinturas corporais, grafismos, rituais, cantos, recursos naturais para produção de tintas e confecção de adereços como cocares, pulseiras, cordões, arcos, flechas); em ciências (o ecossistema local, as transformações químicas dos produtos naturais em tinta, farinha, tarubá, os tipos de energia, a alimentação e a sustentabilidade, o consumo e a preservação água); na educação física (jogos indígenas, canoagem, arco e flecha, atividades físicas diárias); em estudos amazônicos (a história do povo e da aldeia, as atividades econômicas, os meios de transportes); em geografia (os territórios indígenas, a cartografia da aldeia, os problemas de desmatamento, garimpo, exploração ilegal de madeira, poluição dos rios, conflitos em terras indígenas, as cadeias produtivas de recursos naturais, a produção de artesanato); em história (os registros arqueológicos da aldeia, a organização social e do trabalho na aldeia, as lutas dos povos indígenas e dos movimentos sociais dentro e fora da aldeia, os impactos da modernidade na aldeia, os direitos dos povos indígenas incluindo os direitos educacionais, as lideranças indígenas, a homologação do território indígena, os conflitos sociais e culturais na aldeia).

A partir do enraizamento na realidade indígena, podem ser desenvolvidas várias práticas educativas: em língua portuguesa é possível disponibilizar jornais e revistas, com matérias diversificadas e priorizando as questões indígenas, para os alunos lerem e conhecerem sua estrutura; ou criar um jornal escolar e/ou comunitário, com notícias locais, enfatizando as lutas e conquistas do movimento indígena por meio, por exemplo, de entrevistas com lideranças indígenas; ou produzir textos com fatos da realidade da aldeia; ou ainda organizar um intercâmbio de comunicação por escrito de alunos de escolas de aldeias diferentes. Em matemática é possível utilizar os recursos existentes na comunidade para trabalhar os objetos de conhecimento explorando o espaço da aldeia, como as figuras geométricas encontradas no espaço de convivência, as formas e os tamanhos das roças, casas, terrenos, campos etc, os instrumentos de medida baseados em recursos naturais (cipó, tala, madeira, fibra etc). Em religião pode-se trabalhar o respeito, favorecendo a integração e a convivência entre pessoas, a importância dos mitos e dos rituais, a valorização das crenças trazidas por benzedores, puxadores e pajés, o reconhecimento do local dos rituais indígenas como lugar sagrado, além da própria língua indígena e dos saberes tradicionais que fortalecem a cultura do nosso povo.

Conclusão

Este estudo proporcionou uma imersão na realidade educacional dos indígenas Munduruku, destacando não apenas os desafios enfrentados por esse grupo étnico na preservação de suas tradições culturais, mas também as potencialidades e riquezas contidas nos etnoconhecimentos acumulados ao longo das gerações. A reflexão coletiva sobre a integração desses saberes nos currículos escolares da Amazônia não apenas ressalta a necessidade de reconhecimento e preservação cultural, mas também aponta para um caminho de construção de uma educação mais inclusiva e culturalmente sensível.

A prática da Escrita Coletiva, adotada como metodologia, revelou-se não apenas como um processo eficaz de produção colaborativa, mas também como um meio de dar voz ativa aos Munduruku, possibilitando a expressão autêntica de suas ideias, conhecimentos e perspectivas. Ao incorporar ativamente os membros dessa comunidade no desenvolvimento do texto, fortalecemos não apenas a qualidade da produção amazônida, mas também reforçamos o compromisso com uma abordagem inclusiva e participativa na construção do conhecimento.

Em última análise, a inclusão dos etnoconhecimentos nos currículos escolares representa um passo significativo para a valorização da diversidade cultural e a promoção de uma educação que verdadeiramente respeite e integre as singularidades de cada povo indígena. A busca pela preservação e transmissão desses saberes contribui não apenas para a formação acadêmica, mas também para a perpetuação de identidades culturais fundamentais para a riqueza da sociedade brasileira. Dessa forma, este trabalho não apenas lança luz sobre a realidade educacional dos Munduruku, mas também se posiciona como um chamado à ação para a promoção de uma educação mais inclusiva, participativa e comprometida com a preservação das riquezas culturais da Amazônia.

Notas

[1] Ver mais neste link: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal.

Referências

Alencar J.C.P.M., Educação Intercultural e a Formação Específica de Professores Indígenas no Ensino Superior, in “Gepiadde”, n. 16, 2014, pp. 79-98.

Sousa H.J.F. de e Pinho M.J. de,  Etnoconhecimento na perspectiva da educação do campo sob a epistemologia do pensamento complexo e da transdisciplinaridade, in Anais IX CONEDU, CONEDU, João Pessoa 2023.

Tassinari A.M.I., Escola Indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras da educação, in A.L. Silva e M.K.L. Ferreira (orgs), Antropologia história e educação: a questão indígena e a escola, Global, São Paulo 2001.

Tedeschi S.L., Concepções epistemológicas e a produção das identidades e diferenças dos sujeitos no espaço escolar (Tese de Doutorado), Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande 2016.

Os autores

João Kaba Munduruku é professor da Secretaria de Educação do Município de Jacareacanga, no estado do Pará Pará. Egresso do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Mestrando no mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEEI) da UEPA. Membro da Associação Nacional de Comunidades Interculturais e Interepistêmica de Pesquisadores Indígenas.

Joelma Cristina Parente Monteiro Alencar é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Docente do PPGEEI/UEPA e docente da Graduação do curso de licenciatura Intercultural Indígena. É líder do Grupo de Estudos Indígenas na Amazônia (GEIA). Coordenadora do Programa Saberes Indígenas na Escola (SIE) pela Rede Universidade de Brasília (UNB). É coordenadora do Núcleo de Formação Indígena (NUFI) da UEPA e membro do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI).

Waldely Rodrigues Fernandes é professor da Secretaria de Educação do Município de Aveiro, no estado do Pará. Graduado em Licenciatura Intercultural Indígena pela UEPA. Mestrando no mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEEI) da UEPA. Desenvolve pesquisa sobre a história indígena do Baixo e Médio Tapajós junto a projetos de pesquisa arqueológicas desde 2014.