Saberes indígenas na escola e o fortalecimento identitário indígena por práticas curriculares diferenciadas | Indigenous knowledge at school and strengthening indigenous identity through differentiated curricular practices

DOI: 10.5281/zenodo.12778783 | PDF

Educazione Aperta 16/2024

Resumo: A integração dos saberes indígenas no currículo escolar emerge como uma abordagem essencial para fortalecer a identidade indígena. Este estudo examina práticas curriculares diferenciadas, destacando seu papel na preservação e promoção dos saberes tradicionais nas escolas. Consideramos neste trabalho que as práticas curriculares diferenciadas são aquelas desenvolvidas no âmbito das escolas indígenas, linguística e culturalmente diferenciadas das demais escolas do país e adequadas à concretização dos projetos indígenas de educação. Ao incorporar a riqueza cultural indígena no ensino, cria-se um ambiente propício para a valorização da identidade, contribuindo para a autoestima e empoderamento dos estudantes indígenas. Essas práticas não apenas enriquecem o conhecimento acadêmico, mas também fomentam o respeito à diversidade e promovem uma educação mais inclusiva e equitativa. Os procedimentos metodológicos foram orientados pelos preceitos da Escrita Coletiva, em que se utilizou das vivências em dois contextos indígenas no estado do Pará, dos povos Tembé e Surui Aikewara, para as reflexões sobre fortalecimento identitário indígena por meio de práticas curriculares diferenciadas não só como resposta às demandas de justiça cultural, mas também como proposição de uma transformação significativa no paradigma educacional, reconhecendo a importância de múltiplos olhares para uma sociedade mais plural e respeitosa. Os resultados apontam que quando as práticas curriculares são contextualizadas e partem da educação indígena o envolvimento dos alunos e das comunidades nas aulas são mais observadas.

Palavras-chave: saberes indígenas, escola indígena, fortalecimento identitário, práticas curriculares diferenciadas.

Abstract: The integration of indigenous knowledge into the school curriculum emerges as an essential approach to strengthening indigenous identity. This study examines different curricular practices, highlighting their role in preserving and promoting traditional knowledge in schools. By incorporating indigenous cultural richness into teaching, an environment conducive to valuing identity is created, contributing to the self-esteem and empowerment of indigenous students. These practices not only enrich academic knowledge, but also foster respect for diversity and promote a more inclusive and equitable education. The methodological procedures were guided by the precepts of Collective Writing, in which experiences in two indigenous contexts in the state of Pará, of the Tembé and Surui Aikewara peoples, were used to reflect on strengthening indigenous identity through differentiated curricular practices not only as a response to the demands of cultural justice, but also as a proposal for a significant transformation in the educational paradigm, recognizing the importance of multiple perspectives for a more plural and respectful society. The results indicate that when curricular practices are contextualized and depart from indigenous education, the involvement of students and communities in classes is more observed.

Keywords: indigenous knowledge, indigenous school, identity strengthening, differentiated curricular practices.

Introdução

A presença e valorização dos saberes indígenas no ambiente escolar desempenham um papel fundamental no fortalecimento identitário das comunidades originárias. Esta introdução aborda a importância crucial de incorporar práticas curriculares diferenciadas que reconheçam, respeitem e promovam os saberes tradicionais indígenas. Ao fazer isso, não apenas enriquecemos o currículo educacional, mas também contribuímos significativamente para a preservação e revitalização das identidades culturais indígenas.

As práticas curriculares diferenciadas implicam a existência de tantos modelos de educação escolar indígena quantas realidades socioculturais locais forem vivenciadas por comunidades indígenas específicas. São práticas que rompem com a pedagogia colonizadora, ou seja, com os mesmos conhecimentos e as mesmas possibilidades de aprendizagem para todos, de forma homogeneizante, mas, sobretudo, pressupõem uma maneira de desenvolver uma organização de trabalho que integre dispositivos didáticos interculturais, de modo a colocar cada indígena-aluno perante a situação mais favorável de aprendizagem, em um processo de educação decolonial.

Nesse sentido, o reconhecimento e a incorporação dos saberes indígenas nas escolas são fundamentais para promover o fortalecimento identitário das comunidades indígenas. A valorização e a inclusão desses saberes no currículo escolar contribuem para uma educação mais inclusiva, respeitosa e alinhada com a diversidade cultural presente no Brasil. Alguns pontos-chave relacionados a esse tema precisam de atenção.

As práticas curriculares diferenciadas devem reconhecer e respeitar a diversidade cultural das comunidades indígenas. Isso inclui a valorização das línguas, tradições, mitos, rituais e conhecimentos ancestrais presentes nas diferentes etnias. Nesse sentido, o diálogo intercultural é essencial para estabelecer uma ponte entre os saberes indígenas e o conhecimento formal. É importante que as práticas curriculares promovam um ambiente de respeito mútuo e troca de conhecimentos entre professores, estudantes e líderes indígenas.

A participação ativa das comunidades indígenas no processo educacional também é crucial para se garantir a natureza identitária do conhecimento. Isso pode envolver a colaboração na elaboração do currículo, o compartilhamento de práticas pedagógicas e a presença de representantes indígenas no corpo docente.

Os currículos escolares devem incluir de forma significativa temas relacionados à história, cultura e modos de vida das comunidades indígenas. Isso pode ser feito tanto nas disciplinas específicas quanto de forma transversal em diferentes áreas do conhecimento.

A produção de material didático deve ser sensível à diversidade cultural, evitando estereótipos e promovendo a representação adequada das comunidades indígenas. A utilização de materiais autênticos, como narrativas indígenas, pode enriquecer o aprendizado. Os professores devem receber formação adequada para compreender e respeitar os saberes indígenas. Isso inclui o entendimento das dinâmicas culturais, históricas e sociais das comunidades indígenas, além de estratégias pedagógicas específicas.  A implementação de ações afirmativas, como cotas para estudantes indígenas e políticas de inclusão, contribui para o acesso igualitário à educação e para a promoção da diversidade nas instituições de ensino.

Conforme Alencar e Surui (2023) ao longo das últimas décadas, especialmente após a ratificação de marcos regulatórios significativos, como a Constituição Federal de 1988, o movimento para fortalecer a Educação Escolar Indígena no Brasil, com enfoque em uma abordagem específica, diferenciada, intercultural e bi-multilíngue, tem se empenhado em desenvolver métodos educacionais que incorporam e respeitam os saberes ancestrais indígenas. No entanto, concretizar essas diretrizes conforme estipulado em documentos legais tem representado um desafio considerável. Portanto, é essencial estabelecer uma conexão entre o conhecimento vivenciado pelos alunos e o conhecimento transmitido em sala de aula, a fim de evitar a dissociação entre o conhecimento escolar e a realidade dos estudantes.

Considerando que não existe educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que está situada, ou seja, que a educação, e em especial o currículo, só tem sentido se estiver de acordo com as necessidades sociais – incluindo as questões culturais – este estudo foca na elaboração de orientações pedagógicas para a escola indígena. Em particular, tem como objetivo refletir sobre os desafios e possibilidades de elaboração de orientações pedagógicas para a escola indígena, que respeitem as peculiaridades e o projeto societário de cada povo. Para isso, tomamos as vivências em dois povos indígenas do estado do Pará: os Tembé-Grupo Guamá e os Surui Aikewara.

O povo Surui Aikewara é conhecido como povo castanheiro, devido cultivar castanhais e coletar castanha do Pará. A Aldeia Sororó está localizada no sudeste do Pará, às margens da BR 153, km 55, entre quatro municípios: Marabá, São Domingos do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia e São Geraldo do Araguaia. Este povo é também conhecido como Surui do Pará e se autodenomina como Aikewara, pertencente ao tronco linguístico tupi-guarani. Atualmente, há sete aldeias em torno do território Aikewara, sendo que a Aldeia Sororó é considerada aldeia mãe e é liderada pelo cacique Maira Surui.

O povo Tembé Tenetehara vive na Terra Indígena Alto Rio Guamá-TIARG, às proximidades do Rio Guamá, Gurupi e Turiaçu. A língua ancestral é a Tembé, do tronco linguístico Tupi-Guarani. O enfraquecimento do uso social da língua e as ameaças de extinção da mesma, dão à escola um status de espaço da retomada e fortalecimento linguístico. A escola também contribui para a valorização e manutenção das práticas sociais ancestrais[1].

Contextos diferenciados de educação indígena

A educação entre os povos indígenas se dá sempre num processo de construção no dia a dia das aldeias e dos territórios. Ou seja, se desenrola no contexto de convivências no território, em uma constante colaboração, em que toda a aldeia é responsável pelo processo. Em particular, acredita-se que o mundo da infância está relacionado ao sobrenatural e que há uma energia que contagia a família e a comunidade a partir da criança. As crianças indígenas perpassam esse processo enquanto conectores de uma relação entre o mundo humano e o mundo não humano.

Logo, os conhecimentos apreendidos não são apenas instruídos, mas são também vividos, experimentados na convivência entre diferentes sujeitos/agentes. Este processo é construído a partir das afinidades de cada criança: os que se identificam com a construção dos artefatos para caça e pesca, os que produzem as tintas, os artefatos para adornos corporais entre outras habilidades.

Diante desse complexo universo relacional indígena, podemos observar como, por exemplo, para os Tembé são nos rituais que acontecem essas atualizações e transmissão de saberes a partir dos cantos, das danças e das pinturas corporais, enquanto as crianças têm essa proteção dos karoaras (que são os espíritos que participam dos rituais) através do jenipapo. Elas devem estar sempre acompanhadas de adultos, pois assim os karoaras não se incorporam.

Segundo Bewari Tembé, um dos responsáveis pelos rituais na aldeia Sede, as crianças têm uma proteção tal que os espíritos dos karoaras não se aproximam, principalmente se elas já fizeram a festa das crianças e o jenipapo ficou bem grudado no corpo delas. Nesse sentido, as crianças são seres/sujeitos que, para os Tembé, são também sinônimo de proteção, de resistência e também de harmonia: “sem criança na aldeia, na casa, não tem alegria” (Pedro Soares[2]).

Nesse direcionamento, como bem explana Antonella Tassinari (2011): “a noção indígena de educação, portanto, não se dirige apenas à transmissão de ideias, conhecimentos, técnicas e valores, mas reconhece que aquilo que se sabe é ‘incorporado’, toma assento no corpo, e este deve ser adequadamente produzido para receber os conhecimentos” (p. 12).

Assim, reverbera-se o entendimento que o povo Tembé tem em relação a transmissão de conhecimentos que precisa ser feita a partir dessa relação entre esses dois mundos, indígena e não indígena, e nesses dois momentos específicos: nos rituais e no cotidiano da aldeia. Afinal, o dia a dia também produz um tipo de relação entre um mundo e os outros na busca do bem viver, como acontece também nos processos rituais. Assim, o universo da educação nas aldeias indígenas tem esse potencial de construção de relações que pautem um bem viver na comunidade. E as lideranças Tembé pontuam, com muita propriedade, sobre isso, ao dizerem que: “a Educação Indígena é o que se aprende sem dar lição para casa. É lição que se aprende em casa” (Piná Tembé[3]).

Se a casa é o primeiro espaço educativo para os indígenas, a escola deve continuar e não cortar esse processo, servindo como uma importante extensão desse aprendizado familiar que vai ser ampliado com outros tipos de conhecimentos. Logo, as escolas indígenas precisam continuar os ensinamentos que são aprendidos em casa, com as famílias e com a comunidade.

A responsabilidade da escola é dar prosseguimento aos ensinamentos e às experiências próprias da cultura indígena: o fabrico dos artesanatos, o processamento dos alimentos, as armadilhas para a caça, o falar a língua etc. Essas dimensões devem ser implementadas nas disciplinas das escolas para que, no dia a dia do ambiente escolar, as crianças aprendam sem muitas formalidades: por exemplo, no ir para a roça ou aos rios com os professores, no conhecimento sobre o território e os locais onde se encontra a matéria-prima para a confecção dos artesanatos ou as plantas que servem para fazer remédios, entre outras modalidades. Ou seja, uma outra proposta de educação, mais aberta à interculturalidade e ao diálogo de saberes tradicionais e escolares. O processo de escolarização indígena, portanto, se dá no território, que compreende tanto as salas de aulas quanto todo o espaço vivido da aldeia.

Saberes indígenas na escola

A escolarização nas comunidades indígenas desempenha um papel social fundamental. Ela é concebida como uma ferramenta para ampliar a compreensão do mundo e, consequentemente, possibilitar a intervenção na busca por direitos específicos dos povos indígenas. A Educação Escolar Indígena, ministrada na escola formal por professores, complementa um processo educativo que se inicia no seio da própria comunidade indígena. Tradicionalmente, as crianças indígenas até os sete anos passam por um processo de Educação Indígena stricto sensu, que engloba aprendizados socioculturais essenciais transmitidos pela comunidade. Esses aprendizados incluem conhecimentos sobre a língua materna, valores culturais, mitos, tradições e habilidades práticas necessárias para a vida em comunidade. Assim, ao ingressarem na escola formal, as crianças indígenas já possuem uma base sólida de conhecimentos e valores do seu próprio mundo cultural. Essa integração entre a educação formal e a educação comunitária é crucial para garantir que a escolarização contribua para o fortalecimento da identidade étnica e cultural dos povos indígenas, em vez de promover a assimilação e a perda de suas características próprias. A Educação Escolar Indígena deve ser vista não apenas como um meio de transmitir conteúdos acadêmicos, mas também como um espaço para valorizar e fortalecer os saberes tradicionais e a cultura indígena.

Isso vem de acordo com a ponderação do artigo de Terezinha Machado Maher (2006), que enfatiza que quando as crianças indígenas chegam a ir para escola, elas já estão preparadas para exercer sua “florestania”, se tornando sujeitos plenos para defender seus respectivos grupos étnicos. Nesse tipo de escola, os planos para o dia seguinte são feitos ao redor das fogueiras, nas beiras do rio.

Isso se dá porque, a partir do contato, houve outras demandas e foi preciso decodificar os símbolos do homem branco; ou seja, os povos indígenas tiveram que lutar com outras armas para garantir sua sobrevivência física e cultural, sem deixar de ser o que são. Desse modo, pensar em florestania, implica reconfigurar o nosso olhar e as nossas percepções de que a cidadania só é possível para quem vive na cidade, mas devemos acreditar na possibilidade de vida cidadã, também, dentro da floresta. Devemos acreditar que é possível um desenvolvimento humano dentro da floresta com outras tecnologias, com outros horizontes de vida social e muitas alternativas.

No campo da Educação Escolar Indígena, o processo de ensino-aprendizagem se dá gradativamente, de forma contínua. Os Tembé costumam dizer que a sala de aula deles é um espaço de aproximadamente 279 mil hectares e todo o ensino deve partir desse movimento de dentro para fora do próprio território. Há uma sincronia no ensino-aprendizado. Não há metodologias certas ou erradas dentro das pedagogias indígenas, imperando o bem viver, o senso de coletividade, o aprender algo que seja útil para todos. E todos são “responsabilizados” naturalmente por essas tarefas.

Entre os Suruí Aikewara, os velhos anciões Aikewara são considerados uma “biblioteca viva” para todos da comunidade, pois sua função dentro do território Aikewara é assegurar e transmitir os saberes ancestrais e passar todos esses conhecimentos para as gerações futuras, bem como fortalecer a identidade cultural do povo Aikewara, que é algo primordial. São os anciões que detêm o papel de transmitir ensinamentos alusivos aos costumes e ancestralidade.

Os anciões são importantes mentores e referências na formação de um Aikewara. É deles que tudo se origina, principalmente os aprendizados e ensinamentos dos antepassados. Deles que floresce o conhecimento, tanto da natureza quanto da cosmologia Aikewara; são eles que fazem crescer o ser Aikewara dentro de cada um, a identidade e o pertencimento, que é algo valioso para o povo. Os anciões são a base, pois tudo que se aprende vem deles, a cada momento em que se aprende algo significativo da cultura com os velhos sábios, também é uma oportunidade de fortalecer ainda mais a identidade cultural Aikewara; eles ensinam, principalmente, a amar a mãe natureza e a respeitar cada ser vivo que nela habita.

Os professores indígenas também reconhecem o valor que os anciões possuem na formação e na construção do conhecimento, já que são detentores de um saber cultural, por meio do qual se discutem temas ligados à saúde indígena, aos direitos, aos costumes e às tradições. Essa temática é de relevância para que se possa cada vez mais fortalecer a identidade cultural dos povos indígenas, tendo em vista que são questões que fazem parte do seu cotidiano (Nascimento e Silva, 2012).

Os professores indígenas Aikewara também são considerados guardiões do saber tradicional do povo Aikewara, principalmente os professores de língua materna e cultura, pois temos o dever de valorizar a nossa identidade cultural no espaço escola; temos que buscar mecanismo para levar todo esse conhecimento para o currículo escolar, para que as secretarias de educação reconheçam a importância de se trabalhar a cultura de nossos alunos indígenas Aikewara.

A respeito do assunto, Kopenawa e Albert (2010), em A Queda do Céu, ressaltam a importância de ensinar as tradições aos jovens para garantir a transmissão do conhecimento ao longo das gerações. Esse processo envolve a interação com anciãos, pais, sogros, irmãos, cunhados e mulheres. Assim, a construção do saber é diretamente ligada ao contato com os anciãos, que são essenciais no desenvolvimento formativo. Por isso, a importância dos anciões no cotidiano escolar.

Sobre as práticas de educação específicas e diferenciadas

Para os Suruí Aikewara a Og’ete é um espaço para desenvolver todas as manifestações culturais do povo Aikewara como: dança, canto, produção de artesanato, jogos de arco e flecha, rituais tradicionais, pinturas corporais, alimentação tradicional, narrativas orais, entre outras formas de se expressar a identidade cultural do povo Aikewara.

Og’ significa casa, ete significa verdadeiro, ou seja, para o povo Aikewara, og’ete significa “casa verdadeira” em sua língua materna, ou casa tradicional do povo Aikewara. Antigamente, a og’ete era somente uma casa para moradia. Segundo Arirrera Surui, uma sábia indígena do povo Aikewara, os guerreiros da época de seus avós foram transmitindo o conhecimento da construção da casa de cultura og’ete para as futuras gerações e, dessa forma, essa estrutura física prevalece em nossas cabeças até hoje. Nos dias atuais, portanto, a Og’ete indica um espaço cultural finalizado a resguardar os conhecimentos tradicionais, preservar os saberes Aikewara, demonstrando, de forma viva, a memória e a valorização dos importantes bens cultuais que os antepassados deixaram.

Gostaríamos agora de relatar as atividades de formação realizadas entre os anos de 2019 e 2022 na aldeia Sororó, do povo Surui Aikewara pela professora Matania Surui, sob a orientação da professora Joelma Alencar, com os professores que estão atuando em sala de aula desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano), que trabalham em disciplinas do currículo escolar e, principalmente, com as professoras da disciplina de Língua Materna Aikewara e Cultura Aikewara (Alencar e Surui, 2023). Depois de uma formação realizada via plataforma Google meet, devido ao contexto da pandemia de Covid-19 que estávamos vivenciando, as oficinas foram realizadas justamente na Og’ete.

Dando continuidade, especificamente durante a primeira etapa de formação, focamos na elaboração no planejamento sobre o ensino intercultural, que era ainda uma limitação e desafio enfrentados pelos professores indígenas ao incorporarem o conhecimento ancestral Aikewara na educação escolar. Assim, realizamos oficinas formativas com abordagem na cultura onde priorizamos a participação dos mais velhos como mestres da cultura, detentores do conhecimento local tradicional do povo Aikewara. Além disso, os alunos participaram ativamente das oficinas sobre a cultura Aikewara (Alencar e Surui, 2023). Essa foi a nossa estratégia para garantir que as crianças e jovens estivessem interligados diretamente nas oficinas propostas.

A primeira oficina foi de produção de rede tekuwaw’ete[4] na Og’ete, trabalhando junto com os próprios conhecedores desses saberes. Arirrera Surui, Ivani Surui, Irene Surui e Muruating Surui são professoras do conhecimento Aikewara e foram as ministrantes dessa oficina, que ocorreu em três fases: a primeira, o conhecimento de tecer a rede; a segunda, o conhecimento de fazer os trançados dos punhos das redes; e a terceira, colocar os punhos nas redes. Trabalhamos dessa forma para que o aprendizado das mulheres, crianças, jovens e homens pudesse ser significativo e que realmente todos adquirissem de forma qualitativa esse conhecimento.

As oficinas de ensinar as crianças e jovens a cantar pela parte da manhã eram na Casa de Cultura Og’ete, enquanto a noite os ensaios eram no chapéu de palha, em frente à casa do cacique Maira Surui, porque a casa de Cultura não tem energia. Assim, os professores se reuniam e cada um ficava escrevendo no caderno a letra das músicas que o Arawi[5] tinha gravado e transcrito para nos repassar, e também para os professores aprenderem as letras das músicas, para auxiliar o Arawi durante os ensaios com os alunos nas oficinas.

Nesse sentido, a formação em educação indígena se dá para além do chão das academias formais. Essa formação acontece nas aldeias, nas festas culturais, nas caçadas, nas pescarias, na fabricação das artes (casas, maracas, cocar, brincos cestos, canoas) enfim no dia a dia, pois as mudanças constantemente acontecem e a formação se faz necessária no sentido de aprimorar conhecimentos, sejam eles científicos ou de notório saber (maestria indígena), para assim compartilhá-los com a comunidade escolar: ou seja, jovens, crianças, pais e mães de família, que esperam de nós boas práticas em todos os sentidos.

Como Davi Kopenawa bem fala em seu livro A Queda do Céu, “seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos” (ivi, p. 63); ou seja, o autor ressalta a riqueza da sabedoria indígena e a necessidade de reconhecer e valorizar formas de conhecimento que vão além do pensamento lógico e racional predominante na educação ocidental. Ela também serve como um convite para explorar e respeitar as tradições e práticas espirituais que são fundamentais para muitas culturas indígenas ao redor do mundo. Logo, compreendemos que a nossa formação deva nos proporcionar ensinamentos que nos façam colaborar para novos sonhos dos nossos educandos indígenas, sejam eles em qualquer faixa etária ou de ensino. A formação precisa instrumentalizar argumentos que possibilitem o sonho a partir da vivência, das experiências. As metodologias e o fazer não podem ignorar as ciências ancestrais, por isso são os educadores indígenas que devem produzir os materiais didáticos e propostas metodológicas de ensino para reafirmar que tem muito a aprender e também a ensinar.

Todos os conhecimentos tratados nas oficinas são de suma importância para se trabalhar tanto dentro da escola quanto fora dela. São conhecimentos que todos os Aikewara devem se apropriar, praticando-os sempre para não deixar morrer, sejam pinturas corporais, música ou demais elementos culturais, que é preciso repassar para filhos, netos e bisnetos, para fortalecer cada dia mais a identidade Aikewara.

Dentre as oficinas realizadas na casa de Cultura Og’ete, teve também a oficina sobre os cantos Aikewara, com os alunos do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental, sendo que a oficina de música Aikewara foi ministrada pelo professor Arawi Surui, pois ele é o filho do pajé Miho Surui, o cantor oficial da Aldeia Sororó.

Conclusão

A partir do que foi tratado neste trabalho precisamos pensar um currículo que não seja excludente, um currículo que seja feito no chão dos território, que parta da educação infantil – se assim as comunidades quiserem – e envolva todo o ensino básico e todas as outras etapas do ensino. Precisamos não olhar só o agora mas ter uma visão de futuro e para fazer isso precisamos conhecer o que nós somos, como nós éramos e para onde queremos ir. Somos pessoas diferentes que também nos posicionamos em formas diferentes, em todos os sentidos, diante da sociedade, portanto, nossa Educação Escolar Indígena precisa partir das especificidade de cada povo, de cada território com seus diferentes saberes, que ultrapassam as fronteiras das salas de aulas e os muros das universidades, para assim sermos promotores de uma educação que fortaleça nossas vidas e nossa memória enquanto povo.

As práticas curriculares diferenciadas são ferramentas poderosas para fortalecer a identidade indígena, proporcionando aos alunos uma compreensão mais profunda e respeitosa das culturas que contribuíram e continuam a contribuir para a riqueza cultural do Brasil. É hora de reconhecer e celebrar a diversidade, promovendo um ambiente educacional que respeite e valorize os saberes indígenas. Para isso devemos continuar a pensar a função social da escola indígena e do currículo escolar indígena, para que eles protagonizem a luta dos povos, valorizando os saberes tradicionais e sua reinvenção por diferentes gerações.

Notas

[1] Ver mais neste link: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal.

[2] Indígena do povo Tembé, em depoimento concedido em 2022 à Lourdes de Vasconcelos Bentes, uma das autoras deste texto, em fase de sua pesquisa de mestrado.

[3] Indígena do povo Tembé, em depoimento concedido em 2019 à Lourdes de Vasconcelos Bentes, uma das autoras deste texto, em fase de sua pesquisa de mestrado.

[4] Um tipo de rede de dormir, típica da cultura do povo Aikewara, tecida com fios de algodão.

[5] Ele foi preparado por seu pai para ser um sábio indígena das músicas Aikewara.

Referências

Alencar J.C.P.M. e Surui M., A Cultura no Currículo: Um Relato de Vivências com Professores Surui Aikewar, in Anais do IX ENALIC, 2023, url: https://editorarealize.com.br/editora/anais/enalic/2023/TRABALHO_COM_IDENT_EV190_MD3_ID2572_TB2118_06102023114722.pdf.

Kopenawa D. e Albert B., A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, Companhia das Letras, São Paulo 2015.

Maher T.M., A formação de professores indígenas: uma discussão introdutória, in L. D. B. Grupioni (org.), Formação de professores indígenas: repensando trajetórias, MEC/SECADI, Brasília 2006.

Nascimento J.M. e SILVA P.R.P. (orgs), Etnoeducação Potiguara, Pedagogia da Existência e das Tradições, Ideia, João Pessoa 2012.

Tassinari A.I., O que as crianças têm a ensinar a seus professores?, in “Antropologia em primeira mão”, n. 129, 2011, pp. 1-16.

Os autores

Joelma Cristina Parente Monteiro Alencar é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEEI) da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e docente da Graduação do curso de licenciatura Intercultural Indígena. É líder do Grupo de Estudos Indígenas na Amazônia (GEIA). Coordenadora do Programa Saberes Indígenas na Escola (SIE) pela Rede Universidade de Brasília (UNB). É coordenadora do Núcleo de Formação Indígena (NUFI) da UEPA e membro do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI).

Lourdes de Vasconcelos Bentes é professora da Secretaria de Educação do Pará. Egressa do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena pela UEPA. Mestra pelo mestrado profissional do PPGEEI/UEPA.

Matania Surui é professora da Secretaria de Educação do Município de Brejo Grande do Araguaia-Pará. Egressa do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena pela UEPA. Mestra pelo mestrado profissional do PPGEEI/UEPA. Membro do GEIA.