Etnosaberes indígenas da Amazônia paraense: tradição e conhecimento | The indigenous Ethnosaberes of the Pará Amazon: Tradition and Knowledge

DOI: 10.5281/zenodo.12784145 | PDF

Educazione Aperta 16/2024

In this article we seek to establish bridges between the non-indigenous science and the ethno-knowledge of indigenous peoples of the Amazon in treatment of health problems, focusing on the sustainable use of raw materials extracted directly from the forest. The text was constructed based on the report of indigenous people from three different peoples in the Tapajós-Arapiun region, close to the Santarém city, western region of the State of Pará. The narratives analysis was based in the man-nature correlation from the perspective of interculturality and interscientificity, based on the knowledge of indigenous sages. The results demonstrate that indigenous peoples, during centuries, have built deep knowledge about the nature and use this knowledge both in affirming indigenous identity and in treating various health problems.

Keywords: ethnosknowledge, indigenous peoples, interculturality, interscientificity

Introdução

Os povos indígenas brasileiros durante séculos sobreviveram a diversas guerras, doenças e intempéries da natureza utilizando conhecimentos derivados da observação atenta da natureza, que lhes permitiram desenvolver técnicas para caça, pesca, proteção ambiental, cultivo e, especialmente, no tratamento dos agravos à saúde. No Referencial Curricular Nacional para as escolas indígenas (RCNEI), está disposto que:

Numa comunidade indígena, os indivíduos são observadores atentos e ativos. Com engenhosidade, desenvolvem inúmeras ferramentas que lhes permitem um controle eficaz sobre a fauna e a flora do território. Descobrem inúmeras técnicas para cortar, torcer, moer, desfiar e tecer os materiais que serão transformados em objetos para diversos usos. Constroem casas e abrigos, fabricam canoas e utensílios de pesca, produzem armas e instrumentos de caça. Desenvolvem técnicas para diminuir o esforço físico ao transportar objetos ou suas próprias crianças. Sabem extrair substâncias das plantas por meio de vários procedimentos e assim conseguem obter remédios, analgésicos, óleos e infusões medicinais. Extraem ainda perfumes, condimentos e pigmentos de diversas cores. Em resumo, cada sociedade indígena construiu e continua construindo um conjunto enorme de conhecimentos tecnológicos que lhes tem possibilitado sobreviver em seu meio por séculos (Brasil, 1998, p. 254).

Tais conhecimentos, chamados de etnosaberes, são um tipo de saber local, baseado na experimentação, que responde as necessidades de um grupo social específico, mas que tem contribuído fortemente no fortalecimento dos laços de pertencimento dos indígenas com seus povos e, além de tudo, são manifestações da cultura e do jeito de ser e viver de cada povo; pois – como afirma Cunha (2007) – "a ciência não passa ao largo de seus praticantes, ela se constitui por uma série de práticas e estas certamente não se dão em um vácuo político e social".

Cada povo indígena tem uma forma particular de cuidar da natureza, de observar os astros, de preservar o meio ambiente e cuidar dos rios e florestas. Esta forma particular de se relacionar com a natureza é a cultura de cada povo, pois – como nos ensina Marx (2001) – "a maneira como os homens produzem seus meios de existência depende [...] da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir".

Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado de atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção (ivi, p. 11).

Neste artigo buscamos descrever como indígenas de três diferentes povos, habitantes de aldeias que se situam as margens dos rios Tapajós e Arapiun, próximas ao município de Santarém, no Estado do Pará, tratam de doenças utilizando os conhecimentos sobre as ervas e plantas da floresta; e como sua maneira singular de olhar o mundo de uma forma alargada, que mistura seres naturais com entidades espirituais, tem conseguido dar conta de tratar os agravos à saúde durante séculos.

Etnomedicina: os conhecimentos do povo indígena Arapium da aldeia São Sebastião sobre as plantas medicinais da floresta

Para compreendermos o processo de saúde e doença dos povos indígenas, é necessário lançar mão de múltiplas perspectivas, oriundas da história, da antropologia e da saúde pública. É preciso olhar para o passado a fim de entender as dinâmicas contemporâneas. Configura-se fundamental atentar para a cultura desses povos, sua riqueza e seus conhecimentos, assim como para as formas de interação com a sociedade nacional, de modo a entender-se como os povos indígenas respondem às doenças em seu cotidiano. Sabe-se que o olhar do não indígena, daquele que nasceu na cidade, muitas vezes é de preconceito ao entrar em contato com práticas de cura e pajelança dos povos indígenas nas aldeias.

O estudioso Karl Heinz Arenz (2000), em estudo feito na Amazônia sobre o título A Teimosia da Pajelança, trata sobre elementos que fazem parte da cultura da pajelança nos povos ribeirinhos, e entre eles os indígenas. Mas a palavra pajé é mais corriqueira em aldeias, entendendo também que existem aldeias que não tem a figura do pajé, e sim do puxador ou puxadora, o benzedor ou benzedora ou ainda a parteira – figura de suma importância para estes povos.

Os povos indígenas do Baixo Tapajós, mais precisamente os povos que habitam a região do Rio Arapiuns, na área denominada Reserva Extrativista (RESEX) Tapajós/Arapiuns, uma Unidade de Conservação (UC) criada no final dos anos de 1998 por decreto presidencial, onde convivem indígenas e grupos que se autodenominam “povos tradicionais”, tem como principal forma de curar doenças físicas e espirituais as matérias primas oferecidas pela farta floresta que faz parte da biodiversidade dos territórios indígenas que estão neste rio, dentro da RESEX Tapajós/Arapiuns.

Temos nessa região povos indígenas de diferentes etnias, sendo os Arapium a maior etnia em número de aldeias e habitantes.  Nestas aldeias e comunidades, onde estão os indígenas Arapium, a prática de se curar doenças com remédios, defumações e banhos é bem natural. Pouco se utilizam de remédios farmacológicos ou mesmo fitoterápicos, preferem produzir seus remédios para inúmeras doenças. Em algumas aldeias a referência para realizar tratamentos dos doentes é o curador, o pajé, a parteira e os benzedores.

Vaz Filho e Carvalho (2016) tratam esses personagens significativas dentro das aldeias. São na verdade os líderes religiosos dos povos indígenas. Na aldeia São Sebastião, do povo Arapium, esses líderes dominam o processo de produção dos remédios que aqui podemos chamar de “caseiros”, feitos com substâncias retiradas da floresta.

As cascas e folhas de árvores como o Barbatimão, o leite e a casca da Sucubeira, a casca e a folha da Mura Sacaca e a casca da Preciosa (árvore aromática muito usada para fazer chá) são exemplos de matéria-prima usadas para a produção de diversos medicamentos indicados no tratamento de agravos à saúde de membros da comunidade. A casca do cipó Escada de Jabuti é outra espécie muito utilizada para banhos, defumações e para beber em fusão com água.

Na medicina indígena dos Arapium, outros elementos da floresta são usados como remédios, ou seja, além da valorização das ervas e plantas medicinais retiradas da mata, algumas substâncias retiradas de ossos, pelos e banhas de alguns animais são também utilizadas para tratar inúmeras doenças físicas.

Apesar de a maioria dos habitantes da aldeia conhecer as plantas medicinais, nem todos estão habilitados para a manipulação, que na maioria dos casos é feita pelos pajés, que são muito requisitados para fazer benzições, puxar desmentidoras (ossos deslocados ou ainda emendar ossos do corpo com quebradura), entre outros tipos de cura.

Os indígenas acreditam não só no poder das plantas medicinais e dos remédios, mas que o poder dos pajés vem de sua relação com os seres encantados que evocam ao iniciar uma sessão de tratamento, conforme descrito por Vaz Filho e Carvalho (ibidem). Os pajés e curadores são referência para aqueles que buscam a cura para doenças físicas, mas também para as doenças espirituais.

A cosmologia dos Arapium se apresenta nessa relação íntima com a natureza, pois é dela que tudo é retirado para se usar como instrumentos de cura para suas doenças. Os pajés são exímios manipuladores das misturas, conseguem medir as quantidades certas para fazerem chás, xaropes, pastas e as chamadas garrafadas de diversas ervas e cascas de árvores para tratamento de doenças inflamatórias em mulheres.

A etnomedicina presente nos remédios usados pelos Arapium é o que se tem de mais marcante da identidade étnica desse povo, ou seja, sua relação com a natureza e com os seres encantados invocados no momento das curas. Os pajés pedem aos encantados que o doente seja curado com os remédios feitos com o que foi coletado na natureza sem degradar ou destruir a Mãe Terra e a sagrada floresta.

A medicina indígena ainda é contestada por muitos, principalmente por aqueles que trazem a ciência do não indígena para as aldeias. Porém, existem aqueles que valorizam essas sabedorias guardadas pelos pajés, parteiras, curadores e benzedores. Os povos indígenas acreditam que podem ser curados pela manipulação das plantas e  medicinais e com substâncias retiradas de animais da floreta.

Os etnosaberes do povo Tupaiú da aldeia Aningalzinho no tratamento de doenças

Os conhecimentos tradicionais do povo Tupaiú da aldeia Aningalzinho sobre medicina caseira como identidade cultural vem sendo mantidos por gerações e transmitidos de forma oral. No entanto, diversas informações se perderam, pois muitos de nossos sábios já se foram e com eles todas as suas experiências e práticas.

Com base nessa percepção, atualmente o povo Tupaiú está mobilizado em ensinar as práticas medicinais ao seu povo e aos demais povos que precisam, pois todos os tratamentos específicos para cada doença tem resultados positivos. As práticas que são feitas por nós indígenas estão ligadas ao uso dos banhos de cheiro, banhos atrativos, defumações diversas, comprimidos diversos, pomadas diversas, tinturas, garrafadas, sabonetes líquidos íntimos, xaropes, chás e outros que dependem das necessidades específicas do que acontece na aldeia e, nesse trilhar de saberes etnomedicinais, valorizamos as pessoas que detém esse conhecimento ancestral para que seja ensinado aos mais novos, posto que esse conhecimento presente na cultura Tupaiú está ligado à relação intima entre o homem e a natureza.

Apesar do processo de transmissão oral dos etnosaberes não ser um trabalho tão técnico como no processo de ensino e aprendizagem da educação escolar indígena, este é muito significativo, pois apresenta a diversidade de conhecimentos tradicionais que os indígenas Tupaiú adquiriram no contato permanente e na observação atenta da natureza.

Na aldeia Aningalzinho, muitos jovens não têm os conhecimentos reais de como preparar os remédios caseiros, pois somente as pessoas idosas possuem esse conhecimento. Trabalhar a medicina caseira, especialmente para os jovens, é conscientizar sobre a importância de preservar os nossos recursos naturais e em especial a floresta nativa. Isso remete a um nível de conhecimentos próprios da cultura Tupaiú, à relevância de um trabalho permanente que garanta o processo de transmissão do conhecimento para as futuras gerações e à importância do jovem indígena estar inserido no contexto da educação indígena de fato, respeitando a sua cultura e a cultura do outro, ou seja, à necessidade de trabalhar a interculturalidade nos eventos internos e externos da aldeia.

Acredita-se que os etnosaberes Tupaiú produzidos, ensinados e praticados na aldeia Aningalzinho têm muito a contribuir no processo histórico, social e cultural dos povos indígenas da Amazônia e na manutenção desse saber ancestral do povo.

Etnomedicina Borari da Terra Indígena Maró:  saberes sosmológicos e a relação com a floresta

O povo Borari da Terra Indígena Maró é um grupo indígena que até hoje preserva sua crença na cura das doenças com medicamentos extraídos dos seres visíveis e invisíveis da floresta e em seus rituais de pajelança. Muitos desses saberes podem ser encontrados tanto no contato direto com a natureza quanto na prática de cura por meio dos espíritos ancestrais invocados pelos pajés, que têm o dom de se comunicar com os espíritos para ouvir e transmitir as orientações, diagnosticar os tipos de doenças e prescrever as receitas de acordo com cada caso e com os elementos presentes na floresta.

Essa prática cultural vivenciada pelos Borari é conhecida como pajelança, que muito ajuda no tratamento de doenças que competem ao tratamento tradicional, sendo que outras vezes é necessária a intervenção da medicina ocidental, ou seja, é necessário o diálogo intercultural.

Para que a prática da medicina tradicional não se perca, os Borari acreditam ser necessário que estes conhecimentos sejam fortalecidos, preservados e repassados às crianças, uma vez que a identidade indígena de cada povo também perpassa pelo conhecimento medicinal, principalmente no que diz respeito ao mundo cósmico.

Essas experiências transmitidas oralmente de pai para filho não devem ser esquecidas. No entanto faz-se necessário que haja o respeito na forma de transmitir esses conhecimentos, Baniwa (2019) afirma que um dos fatores que o preocupa é o modo como a ciência ocidental induz os indígenas ao exercício do isolamento do homem do mundo e da natureza, rompendo com o modo de vida cultural. Nesse sentido, é importante que os saberes etnomedicinais na cultura Borari sejam vivenciados no dia a dia dos indígenas – o que ajuda a manter a cultura Borari fortalecida.

Na aldeia Novo Lugar, onde vivem os Borari da Terra Indígena Maró, ainda são vivenciadas diversas práticas de cura, dentre elas se destaca a cura de doenças provenientes de olhada de bicho[1], onde o pajé invoca os seres ancestrais para obter orientação, realizar o diagnóstico e emitir receitas de remédios produzidos com ingredientes existentes na natureza. O pajé, que nasceu com o dom de curar também se utiliza de rezas que ajudam a afastar a doença da pessoa enferma.

O mesmo acontece com as pessoas que puxam, que invocam os seres ancestrais durante o trabalho de cura de problemas físicos. Diversamente do que acontece na medicina ocidental, na cultura Borari o puxador consegue colocar no lugar o osso caso esteja apenas desprendido do devido lugar; no caso o paciente apresente fraturas, existe a possibilidade de cura por meio das banhas, raízes e leites, como por exemplo, o cará emenda osso[2], o leite de Apuí[3], a banha de Sucuriju com Andiroba e outros.

Outra prática em que a medicina tradicional é muito presente é a produção de banhos, xaropes, pomadas e garrafadas com produtos extraídos da natureza para tratamento de inúmeras doenças. Tais preparados exigem conhecimento e cuidado, visto que é necessário conhecer a quantidade de ingrediente, as espécies que podem e as que não podem ser aquecidas, o tempo de preparo e os horários e locais indicados tanto para extrair os ingredientes na natureza, quanto para o preparo como para o consumo dos preparos. Segundo as orientações costumeiras, há regras para cada situação que devem ser seguidas, porque, caso contrário, o paciente pode vir piorar ou ainda as espécies de plantas medicinais podem ser ser prejudiciais.

Ainda é necessário investir na compreensão que possibilite e valorize o diálogo intercultural entre o conhecimento tradicional e o ocidental. É certo que a ciência ocidental tem muito a apreender com os povos indígenas sobre os ritos de cura: por exemplo, se um paciente for picado por uma cobra, nem todas as pessoas podem vê-lo; não pode se deitar em cama, se não a dor aumenta; em sua recuperação são necessários 40 dias de repouso sem poder ser assustado; não pode ter contato com carvão ou cocô de galinha, pois entendem-se que esses são fatores reimosos ou que podem provocar recaída nas dores.

Esta forma de cura, que aos olhos do não indígena poderia ser considerada superstição, em verdade faz parte de rituais culturais próprios de diversos povos indígenas na Amazônia. Segundo o RCNEI (Brasil, 1998), muitos povos indígenas têm uma visão de sociedade que transcende as relações entre humanos e admite diversos “seres” e forças da natureza com os quais estabelecem relações de cooperação e intercâmbio. No entanto, tais conhecimentos são dotados de alta capacidade de solucionar diversos problemas de saúde que se colocam no dia a dia das pessoas da comunidade. É um tipo de saber que se aproxima daquilo que Lévi-Strauss (2008) chama de ciência do concreto, pois é fruto de observação atenta e de experiencias durante séculos.  

Assim acontece no tratamento de pacientes grávidas ou com doenças próprias das mulheres. De acordo com os depoimentos de dona Edite, parteira, terapêutica e produtora de remédios caseiros na aldeia Novo Lugar, em aproximadamente 28 anos, foram mais de trinta mulheres com mioma, cistos e inflamação tratadas por ela, sem precisar recorrer a cirurgias ou medicamentos farmacológicos, assim como mulheres estéreas que após ingerir suas garrafadas tiveram a oportunidade de engravidar, tendo estas ingerido produtos 100% naturais. Dona Edite estima que realizou mais de quarenta partos na aldeia, onde seu conhecimento ancestral ajudou a trazer ao mundo com sucesso várias crianças, o afeto e o tratamento pós-parto com remédios naturais tornaram muitas mulheres saudáveis.

São muitos os conhecimentos tradicionais que devem ser registrados e também valorizados pela cultura ocidental. Espera-se ainda que exista futuramente um maior investimento na cultura indígena dos etnosaberes, uma vez que são importantes para a cura de várias doenças sem recorrer ao recurso, também importante, da medicina ocidental – mesmo porque não são todos os tipos de doenças que conseguem ser tratadas na medicina tradicional. Mas se as duas práticas, tradicional e ocidental, convivessem juntas, ambas se somariam e seria diferente: por exemplo, no caso de uma paciente grávida em trabalho de parto com bebê em posição incorreta, se fosse aceito o conhecimento da parteira, apenas suas mãos e sua massagem corrigiriam a posição sem precisar realizar prática cesariana. Pois nenhum conhecimento é mais importante que o outro e estes deveriam se somar e respeitar-se para abrandar o sofrimento das pessoas, indígenas ou não.

Conclusão

Os povos indígenas da Amazônia desenvolveram durante séculos um conjunto de saberes que os possibilitaram sobreviver a diversas mazelas sem precisar recorrer à ciência do não indígena. No entanto, as diversas situações de contato e as modificações que se processaram a partir dele levaram os indígenas a conviverem com problemas de saúde para os quais seus conhecimentos não conseguem resolver; portanto, se faz necessário recorrer aos hospitais dos centros urbanos sempre que algum problema de saúde mais grave aconteça. No entanto, retirar um indígena doente de sua aldeia e levá-lo a um hospital na cidade não é um processo simples e, em muitos casos, exige a utilização de aeronaves – o que torna tal serviço difícil e oneroso.

Para o tratamento de doenças com as quais as comunidades e povos indígenas convivem há séculos não é necessário recorrer ao hospital, pois os mesmos, por meio da observação atenta e contínua da natureza, desenvolveram diversas técnicas de preparo de medicamentos com ingredientes retirados diretamente da natureza, que lhes garantem tratar diversos males sem recorrer a remédios de farmácia e sem custos.

Tal qual no mundo do não indígena, entre os povos indígenas nem todos têm um olhar atento aos fenômenos que ocorrem na natureza, então, nas aldeias existem pessoas que, pela prática e contato diário com a floresta, desenvolveram conhecimento aprofundado sobre as qualidades medicinais de algumas plantas e animais – o que os torna potencialmente ricos em conhecimento e referências no tratamento dos agravos à saúde em suas aldeias. Essas pessoas, por seu conhecimento aprofundado, são cientistas da floresta, da natureza e de tudo que ela pode proporcionar de bom para a vida das pessoas. Os ingredientes retirados da floresta são manipulados e se transformam em muitos tipos de chá, unguentos, garrafadas e incensos, que são utilizados no trato de diversos agravos à saúde do indígena.

No entanto, como característica de muitos povos indígenas amazônicos que admitem colaboração com os diversos seres, os cientistas da floresta frequentemente invocam as forças da natureza e suas divindades para lhes repassar orientações do que devem, quanto devem e como devem utilizar para cuidar de sua gente respeitando a cultura de cada povo.

O mesmo acontece com indígenas que aprofundaram o conhecimento do corpo humano, como parteiras e puxadores, que aplicam todo seu etnosaber e a força de seus ancestrais, tanto para trazer ao mundo os novos membros do povo indígena quanto para tratar de diversos tipos de torções e machucados resultantes da lida diária.

Os povos indígenas nos ensinam que a relação homem-natureza, quando harmoniosa e respeitosa, gera benefícios a ambos. Ao homem, a cura de diversas doenças, a alimentação de qualidade, a beleza de rios que geram peixe e diversão, cheiros, sabores, tintas, imagens, a reprodução cultural e muito mais. À natureza a garantia de que vai continuar existindo, imponente e bela.

Notas

[1] Na cultura Borari da Terra Indígena Maró indica uma doença causada por um ser invisível que habita os fundos de rios, cabeceiras de igarapés, um dono da mata ou de qualquer lugar, entre outros. Geralmente o doente é atacado invisivelmente pelo ser maldoso. Os sintomas são dores de cabeça, febre, calafrios e falta de apetite, o que pode evoluir a óbito quando não tratado.

[2] Raiz encontrada na Amazônia

[3] Extrato extraído da árvore do Apuizeiro.

Referências

Arens K.H., A Teimosia da Pajelança: o sistema religioso dos ribeirinhos da Amazônia, Instituto Cultural Boanerges Sena, Santarém 2000.

Brasil, Referencial curricular nacional para as escolas Indígenas, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, Brasília 1998.

Cunha M.C. da., Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico, in “Revista USP”, n. 75, 2007, pp. 76-84.

Lévi-Strauss C., O pensamento selvagem, Papirus, Campinas 2008.

Luciano G.J. dos S., Educação para o Manejo do Mundo, in “Articulando e Construindo Saberes”, v. 4, 2019, pp. 1-17.

Vaz filho F.A. e Carvalho L.G. de, Pajés, Benzedores, Puxadores e Parteiras: Os imprescindíveis sacerdotes do povo na Amazônia, UFOPA, Santarém 2016.

Os autores

Edivan Lopes dos Reis é do povo Arapium, do Território Indígena Terra dos Encantados. É um pajé, uma liderança indígena. É morador da aldeia São Sebastião no Rio Arapiuns. Pedagogo, Professor e mestre em Educação Escolar Indígena pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). É servidor público da Secretaria Municipal de Educação de Santarém e estudante de agronomia pelo Instituto Federal do Pará.

Gilson Paulo Nunes Silva é do povo Tupaiú, da aldeia Aningalzinho Tite – Território Indígena Terra dos Encantados, é professor e mestrando em Educação Escolar Indígena pela UEPA.

Lidiane Alves de Sousa é do povo Borari, reside na aldeia Novo Lugar, localizada na Terra Indígena Maró, no município de Santarém, no estado do Pará. Mestre em Educação Escolar Indígena, é professora na Escola Indígena Salustiana Borari. A liderança da aldeia é exercida por Apolonildo de Sousa Costa, enquanto o Cacique Geral é Odair José Alves de Sousa. O pajé da Aldeia é Higino Alves de Sousa.

Maria Gelziane Regis Santana é do povo Tupaiú da aldeia Aningalzinho do Território Indígena Terra dos Encantados Rio Arapiuns – RESEX Tapajós/Arapiuns. É professora na escola Sorriso de Maria, líder da aldeia e faz parte do conselho de líderanca. É mestranda em Educação Escolar Indígena pela UEPA. O cacique da aldeia é o senhor Tomas Correa Santana.

Messias Furtado da Silva é doutor em Educação Para a Ciência, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena e do Departamento de Educação Especializada da UEPA. Pesquisador do Grupo de Estudos Indígenas da Amazônia.