A sociopoética como abordagem de pesquisa e ensino decolonial, contracolonial e libertadora | A sociopetics as a research approach and decolonial, countercolonial and liberating teaching

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Descubrí el secreto del mar 
meditando 
sobre una gota de rocío. 
Machado

Abstract

This article evolves in two stages: in the first stage Sociopoetics is presented as a research and education approach that echoes with the thought of decoloniality, radicalizing it in a counter-colonial perspective where, through the formation of a research-group author and owner of the research, the indigenous, Afro-descendant, peasant, children of suburban ways, etc. producing knowledge creates an instituting and liberating science. The knowledge of the body and the unconscious are mobilized through artistic techniques of data production.

In a second step, we present the results of a sociopoetic research on the body, carried out with 27 children from a House that attends female children and adolescents victimized by innumerable violence. The objective was to analyze the confects and deterritorialized concepts produced by children on the body, enabling the emergence of the problems that mobilize them and thus facilitating the production of other concepts on the referred theme. Starting from the problematics, the children’s thoughts presented the following dimensions: the fears and what the child’s body can do in the face of difficult situations and their relationships with the family. In this way, new perspectives were created for the actions of educators.

 

A sociopoética (Jacques Gauthier)

As Américas foram colonizadas violentamente: os povos nativos foram dizimados e povos africanos foram escravizados, criando suas riquezas. A colonização foi cultural, educacional, psíquica e espiritual, além de política e econômica. Em muitas regiões os povos nativos e escravizados resistiram, mantendo suas formas organizacionais e educacionais, assim como, seus rituais sagrados fora de alcance do colonizador (por exemplo, o xamanismo indígena ou os quilombos afrobrasileiros) ou criaram religiões preservando a ancestralidade africana, como o candomblé.

Como educadores e pesquisadores não podemos reproduzir as formas instituídas pelos países colonizadores nas nossas práticas. Queremos decolonizar a Universidade a partir de uma abordagem contracolonial da pesquisa e ensino. Decolonizar significa que introduzimos na academia uma abordagem que pretende entrar em diálogo crítico com os fazeres instituídos e suas teorizações e, aos poucos, colocar em crise esses procedimentos. A referência muito usada no Brasil é o livro coordenado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses[1], assim como os trabalhos do grupo Modernidade/Decolonialidade[2].

A ideia fundamental é de produzir ciência a partir das epistemologias que foram colonizadas num movimento de negação ainda vivo de parte da humanidade pela Europa conquistadora, não apenas fisicamente pela escravidão e pelo extermínio físico, mas também, pelo desprezo e silenciamento dos seus modos de pensar e criar conhecimentos novos: fala-se de genocídio epistêmico. 

Contracolonizar é radicalizar a atitude epistêmica decolonial: significa que partimos diretamente das tradições indígenas e afrobrasileiras nas práticas de pesquisa e ensino. Quem precisa decolonizar é a instituição acadêmica, e quem fala ou escreve a partir do interior dela. Os colonizados têm nada a decolonizar, e sim, podem se contrapor ao instituído, “contracolonizando”[3]

A falta histórica de dialogicidade das instituições importadas da Europa com as comunidades indígenas e afrodescendentes, ou seja, a colonialidade (a ainda viva dominação consciente e inconsciente dos valores e práticas eurodescendentes, com desvalorização ou negação dos valores e práticas que foram colonizados) em que vive a população dificulta nosso trabalho. Frequentemente torna-se difícil contracolonizar educação e pesquisa, a não ser que trabalhemos diretamente com as comunidades, injetando suas perspectivas instituintes nos devires educacionais e de investigação. Geralmente, a situação e nossa posição na instituição nos obrigam a somente decolonizar nossos saberes, sua formação na pesquisa e sua transmissão dialógica no ensino, mas essa fraqueza é também uma força, pois, comprova que é relativamente fácil defender trabalhos de conclusão de cursos de graduação, mestrados, doutorados e pós-dourados que criem caminhos novos e libertadores, decolonizadores dentro da própria academia, conforme mostra a segunda parte desse artigo, por certo contracolonizadora no processo de produção sociopoético do conhecimento, mas sofrendo os limites das instituições de educação e pesquisa no seus efeitos práticos. 

O que é a sociopoética

A sociopoética segue cinco orientações básicas[4]:

1) A instituição do grupo-pesquisador, coletivo sensível e inteligente autor e responsável pela pesquisa, inspirado nos “Círculos de Cultura” de Paulo Freire e nas “Assembleias Gerais” da Análise Institucional: os participantes, os “copesquisadores”, são pesquisadores de si, através da potência do grupo acolhedor das angústias, desejos e prazeres de cada um/a, sem julgamento nem preconceito. Os/as copesquisadores/as aprendem, mesmo com oficinas de umas 16 horas (o suficiente para uma pesquisa de Mestrado), a sonhar com o outro, a devanear juntos. O grupo-pesquisador marca (insistimos sobre o hífen na palavra composta) que ele não é apenas constituído pela adição de pessoas, mas se define como personagem singular, intelectual coletivo, filósofo original criador de problemas inéditos, de confetos e intuicetos, de personagens conceituais[5]. Tomando forma de sujeito em processo de individuação, ele é percorrido de fluxos diversos, heterogêneos, de contradições ou conflitos, assumindo paradoxos e incertezas: seu pensamento é um devir e um filósofo coletivo, porta-voz do personagem conceitual[6]

O devir é uma fuga fora dos engessamentos instituídos, no sentido de criar elos instituintes, muitas vezes inesperados e “impensáveis”, constituindo assim novas formas de desejar, se alegrar, se expressar, em dispositivos compostos por dimensões heterogêneas. Deleuze e Guattari enfatizam a pertinência filosófica de “devires-minoritários”, e entre eles, selecionam o “devir-mulher” como ponto de partida de todos os devires[7]. Referem-se à obra de Marcel Proust com seu “devir-garota”, mas podemos falar do devir-mulher do homem combatendo o machismo e patriarcado (já trocando fraldas e lavando louça, ou tornando-se Oxum – divindade das águas doces, da fertilidade, beleza e empoderamento feminino – em rituais do Candomblé), assim como, do “devir-mulher” da própria mulher, que se torna ativista feminista, em casa como fora de casa em lugar de apenas criar filhos esperando tudo da mãe. Na sociopoética, o grupo-pesquisador vivencia um “devir-filósofo”: sua potência crítica para com as dominações sofridas e internalizadas é maior daquela de um membro isolado, e essa potência crítica é atualizada em produções de tipo artístico: a crítica é o lado cara da moeda, a criação, o lado coroa. Crítica e criação: CRICRI.

2) Um extremo cuidado com as culturas dominadas e/ou de resistência é a segunda orientação da sociopoética. Culturas indígenas, afrodescendentes, culturas de mulheres, de trabalhadores do campo e da cidade, culturas de crianças, culturas de moradores de rua etc. Assim podemos pedir a um sábio ou uma sábia da cultura dominada para interpretar os dados produzidos em referência aos conceitos e valores da mesma (por exemplo, um pajé – xamã, ou uma Iyalorixá - sacerdote do candomblé, ou ainda, uma mulher camponesa do interior); ou ele orienta uma vivência característica dessa cultura para a produção dos dados... Trata-se de aprender a pensar de maneira mais ampla, menos “narcisista”, aberta à alteridade, diferença e heterogeneidade. No melhor dos casos conseguimos pesquisas autenticamente interculturais, com dialogicidade entre o mundo acadêmico e o mundo indígena, de quilombo ou de bairro popular. Contestamos o privilégio dado pela academia ao “logos”, à fala racional, já que os movimentos sociais e as comunidades populares não possuem necessariamente a mesma concepção da racionalidade (ela é muito mais prática e engajada, no caso: palavra certa no momento certo, racionalidade que os Gregos chamavam de “kairós”), e não limitam seu jeito de pensar ao mero “cérebro esquerdo”, como se diz, mas pensam com todas as faculdades cognitivas do corpo, todas as conexões do cérebro. 

3) Assim, a terceira orientação da sociopoética é a exigência de produzir conhecimentos a partir de todas as potências do corpo, e não apenas a razão abstrata, que possui grande valor, mas não esgota nossa força cognitiva e criativa: a sensibilidade (no toque, no cheiro, na escuta e fala etc.), a emoção, a intuição, a gestualidade, a imaginação e, notadamente, a faculdade de pensar em imagens e até a razão prática (fazer ou dizer a coisa certa no momento certo) participam do que nos é oferecido pelo nosso corpo para investigar o ambiente. Isso é a fonte das noções de “confeto” e de “intuiceto”: ninguém pensa apenas com a razão abstrata de tipo lógico. Isso foi comprovado por muitas pesquisas em biologia e psicologia cognitiva. Mas é só ouvir as pessoas que vivem ao nosso redor para perceber o quanto elas são motivadas a compreender o mundo pelos seus afetos. E a intuição, também, tem um papel pouco estudado porque discreto, mas relevante, nas nossas orientações e tomadas de decisão. Os sociopoetas sabem se entregar com confiança a suas intuições, particularmente no momento do estudo dos dados.

4) Daí o caminho de técnicas de inspiração artística para a produção dos dados: artes plásticas, música, dança, teatro, contos e poesia são o caminho para que se expressem esses saberes do corpo, geralmente velados, subconscientes ou inconscientes. Com dinâmicas de inspiração artística queremos que participe da pesquisa o inconsciente de cada um/a – aquilo que nunca seria expresso em entrevistas, por causa do autocontrole racional da fala do entrevistado por si próprio. Até os sociopoetas acostumados com a prática do seu método acham curioso o fato de que pesquisadores conscienciosos consigam se satisfazer com entrevistas, que lembram com tanta força as armadilhas da escola... Queremos, sim, mobilizar em bons caçadores de nós os nossos inconscientes, individuais e coletivos, como co-autores das nossas pesquisas.

As etapas de uma pesquisa sociopoética são as seguintes, após negociação com os anfitriões da mesma: produção dos dados num estado de relaxamento total favorecendo a livre circulação das energias em nós e o surgimento de imagens inconscientes; análise dos dados “na hora”, pelo grupo-pesquisador; estudo “frio”, na solidão, desses dados pelo facilitador, como se o grupo-pesquisador fosse um filósofo sensível só; contra-análise, pelo grupo-pesquisador, das “conclusões hipotéticas”, dos problemas, confetos e intuicetos oriundos do estudo realizado pelo facilitador; no fim, identificamos o “personagem conceitual” que fez a pesquisa como grupo-pesquisador; depois desse trabalho que estrutura o tempo das oficinas é desejável que aconteçam entrevistas individuais ou em pequenos grupos para precisar a singularidade e originalidade da contribuição de cada um/a, e entender assim melhor as diferenças percorrendo o pensamento coletivo, além de valorizar cada ser na sua diferença - o que possui efeitos terapêuticos.

5) A quinta orientação é o cuidado com a posse da pesquisa, pelo próprio grupo-pesquisador, e não pela academia. Não podemos tratar os participantes como objetos, uma vez a pesquisa finalizada. A comunidade acolhedora do projeto tem direito de pedir nossa contribuição na realização de mostras, intervenções artísticas ou sociais tornadas possíveis pela pesquisa. Não podemos nos apossar dos saberes dos outros, colonizando-os outra vez. A sociopoética, pelo contrário, fornece dispositivos para que aqueles detentores de saberes populares se tornem filósofos, vivenciem um devir-filósofo através do grupo-pesquisador. Eles participam da produção de saberes científicos sem que esses saberes sejam roubados por acadêmicos “bem intencionados” que criam assim uma mais-valia de conhecimento, exploração grátis dos saberes populares, que no caso de povos que foram colonizados, pode ser um estupro realizado para com o Sagrado Ancestral (de fato, esses povos geralmente se protegem, ao não desvelarem aos pesquisadores seus saberes mais vitais em termos espirituais e culturais). 

Estamos cada vez mais convencidos de que a sociopoética, que festeja seus 25 anos em 2020, tem brilhante futuro no século XXI, que será o século da descolonização e contracolonização do pensamento, da democratização e autogestão dos dispositivos de pesquisa e do empoderamento dos sujeitos, frente aos perigos de uniformização e manipulação dos corpos, das mentes e dos espíritos pelo e dentro do Capitalismo mundial integrado. A palavra “contracolonial” é pertinente, pois, se a academia precisa se descolonizar, os povos e grupos colonizados vivenciam mais uma prática instituinte de “contracolonização”, a partir das suas culturas de resistência ancestrais e espirituais. 

Sociopoética e epistemologia decolonial e contracolonial

Vamos tentar destacar o aspecto instituinte da sociopoética em termos epistemológicos: 

1) O fato de que a produção do conhecimento é coletiva. Cinco aspectos devem ser considerados:

a) O grupo é acolhedor: não apenas ninguém avalia ninguém, mas sobretudo, existe um respeito e carinho mútuos que facilitam a expressão de realidades íntimas que, frequentemente, tal ou qual copesquisador/a descobre no momento em que comenta sua criação. Não é raro pessoas vivenciarem processos de autocura no decorrer da pesquisa, apesar do contrato ser exclusivamente de produção de conhecimentos. Os facilitadores não devem brincar de terapeutas: seria trair a confiança colocada neles. Apenas, devem saber lidar com risos, choros e outras manifestações emocionais, o que não é muito difícil. O interessante, aqui, é que voltamos ao mundo filosófico de antes de Aristóteles, quando ensinar algo era curar e quando educar era cuidar. Voltamos às origens xamânicas do pensamento, quando não tinha uma barreira no nível do diafragma, quando as energias corporais estavam fluentes, integrando o físico, o emocional, o cognitivo e o espiritual.

b) Nessa visão “coletivista” da pesquisa científica e filosófica existe o exato contrário da homogeneização e padronização dos seres tal como é produzida pelo capitalismo consumista globalizado. A sociopoética valoriza as diferenças ínfimas, as perspectivas originais e singulares. As entrevistas individuais que acontecem no fim da pesquisa são mais ricas que as entrevistas habituais em pesquisas normalizadas, pois têm por objetivo a explicitação da diferença de cada um/a (a qual apareceu em interação com o inconsciente), e a fascinante reflexão dos interessados sobre sua originalidade revelada no grupo e pelo grupo - que eles nem sabiam possuir antes da pesquisa.

c) Assim, o desvelamento racional – base da filosofia eurodescendente – encontra o sentido do mistério e da parte de escuridão que há em toda luz, típico do modo de pensar nas culturas da Ancestralidade. Podemos igualmente voltar ao jovem Nietzsche, que opunha o dionisismo com seu aspecto sombrio, telúrico e selvagem, à luz apolíneo do conceito. 

A noção sociopoética de confeto integra o selvagem com o racional. Com o intuiceto ligamos o Sol conceitual da racionalidade com o Plasma do Raio que excede a racionalidade, rasgando o Céu do Logos, das nossas falas acadêmicas, por intuições repentinas sem qualquer tipo de justificativa razoável. 

d) Nessa interação entre o coletivo e o singular fluem os conhecimentos como ondas energéticas. A fala, nas civilizações da Ancestralidade, é uma potência, ela é “pragmática” e criadora, ela é um devir. Assim, certas falas-conhecimentos-energias me atravessam, como atravessam, por exemplo, três outros membros do grupo-pesquisador: elas são infra-individuais. Elas mostram a existência desses outros em mim, e de mim neles. E no mesmo tempo, elas podem se opor à fala de dois outros copesquisadores, e combinar com a fala de um outro abrindo novas perspectivas. Assim, essas falas íntimas tomam seu pleno sentido no grupo inteiro, na estrutura complexa do filósofo coletivo que somos: os confetos são geralmente grupais, transversais. Descobrimos que pensar é um processo coletivo dentro da prática da pesquisa. Podemos relacionar esse processo com o que acontece em rituais sagrados afrodescendentes ou indígenas, quando energias de mesma frequência criadas ou “chamadas” pelo dispositivo grupal perpassam vários corpos, ao mesmo tempo que essas energias infra-individuais participam do andamento do grupo, ampliando assim os corpos individuais num corpo coletivo integrado nas suas contradições e diferenças, e incluído em forças cósmicas (o “Axé”, ou “mana” dos antropólogos).

e) Existe aqui um aspecto espiritual, sempre negado no mundo acadêmico eurodescendente: nessa livre confrontação e interação entre saberes vindos do inconsciente, o “eu” se enfraquece, assim como os apegos. Tornamo-nos mais fluídos, mais abertos e flexíveis. Alguns entre nós (mas nem todos, existe total liberdade de aderir ou não: mais uma vez, a sociopoética não é uma teoria, mas um método) acreditam que essa abertura nos relaciona com seres espirituais não encarnados, que se atualizam em nós... e, eventualmente, participam diretamente da pesquisa.

2) O grupo-pesquisador é autor da pesquisa, e não o facilitador acadêmico que apenas é guardião do tempo, da igualdade entre todos no direito de se expressar, da ausência de qualquer forma de julgamento sobre o outro e, obviamente, aquele que fornece as técnicas de produção de dados (às vezes com a colaboração de sábios das culturas de resistência),  assim como os resultados do estudo “em casa” dos dados da pesquisa. As hierarquias de poder-saber são subvertidas pelo grupo-pesquisador. Estamos num ambiente libertário que lembra o mundo indígena onde a noção de “chefe” não possui sentido e onde os saberes são compartilhados, ou ainda, as Assembleias Gerais do movimento operário libertário. 

3) Integramos assim o “perspectivismo” indígena evidenciado por Eduardo Viveiros de Castro[8]. Com efeito, com uma técnica oriunda do Teatro do Oprimido segundo Augusto Boal (por exemplo, a fecunda técnica do “Teatro-Imagem”), aparecerão dados muito diferentes daqueles favorecidos por uma técnica de criação em artes plásticas. Imaginem a distância, ainda, com dados que viriam de entrevistas! A técnica do “diário de itinerância” oriunda da Análise Institucional, onde cada copesquisador/a pode escrever, colar, desenhar... tudo que quiser – até os sonhos da noite - durante as sessões, e socializado no início ou no fim de cada sessão, pertence igualmente à nossa visão perspectivista da vida. 

4) Pensamos com o corpo, com nossas emoções e sensações e, até, motricidade; pensamos chorando, rindo, dançando: eis uma contribuição contracolonial no fazer-ciência.

A sociopoética acolhe essas lógicas do corpo, lógicas do grupo, lógicas espirituais, desconhecidas pela academia. Vamos dar dois exemplos: 

a) Numa pesquisa de Mestrado realizada com indígenas Pataxó do Extreme-Sul da Bahia, a sociopoeta Maria Geovanda Batista encontrou uma situação na qual duas anciãs, Dona Zabelê e Dona Jovita, que mantiveram a tradição e os saberes ancestrais no pior momento da repressão colonial, uma – hoje desencarnada - sendo a referência de sabedoria da aldeia, outra, xamã e Mãe-de-Santo na Umbanda, pediram para serem facilitadoras com Geovanda da pesquisa realizada na aldeia com o tema gerador do brincar indígena (os indígenas chamam também de “brincadeira” seus rituais sagrados!). Assim foi a dança do Toré uma técnica de produção de dados, na qual apareceram espíritos que Candomblé e Umbanda chamam de “Caboclos”, e os próprios Pataxó, de “Encantados”. Essas entidades, esses Antepassados participaram da pesquisa, produzindo dados. 

b) Numa pesquisa com o tema-gerador da “noção de saúde em populações afrodescendentes e indígenas”, facilitada por Jacques Gauthier com dois grupos-pesquisadores compostos principalmente por afrodescendentes em Salvador (e também, com grupos-pesquisadores Tupinambá do Sul, e Pataxó do Extremo-Sul da Bahia), uma num Terreiro de Candomblé, outra no turno noturno de um Colégio Público composto quase exclusivamente de evangélicos, apareceu uma concepção do corpo e da saúde onde o aspecto espiritual era fundamental (era só trocar “Jesus” por “Orixá”, e reciprocamente). Isso é, sem dúvida alguma, uma herança africana compartilhada por dois grupos que se olham como gatos e ratos, os evangélicos e os candomblecistas, os quais são frequentemente assimilados a criaturas do diabo pelos primeiros. É irônico para os “crentes” que lhes seja lembrada com força sua herança africana, cultural e religiosamente desprezada pela referência bíblica - na versão instituída em muitas igrejas pentecostais brasileiras. Será que a técnica academicamente instituída das entrevistas teria evidenciado tal proximidade dos evangélicos com a África dos seus ancestrais? Duvidamos. 

Filosofia da sociopoética  

Geralmente, os sociopoetas se apoiam na esquizo-análise de Deleuze e Guattari para teorizar sua prática. No entanto, a sociopoética não é uma teoria, e sim um método podendo acolher qualquer construção teórica “acima” (como generalização) ou a propósito (como explicitação) dele. Mas na versão mais recente da teorização da sociopoética por mim, seu criador, a ligação entre saber e sabedoria, ciência e espiritualidade é fortemente afirmada, com a certeza de que Deleuze e Guattari pararam no meio do caminho. Assim, na sociopoética tal como a vejo hoje (e ninguém tem obrigação de me seguir), o Corpo sem Órgãos, CsO, “cresce espiritualmente” em Corpo com Coração-Vacuidade, CcC-V. Com efeito, critico nossos autores por trabalharem principalmente o aspecto Yang, viril, agressivo, cheio, de dentro para fora (no candomblé afrobrasileiro, Deleuze seria filho de Ogum, guerreiro nômade do rizoma, do inhame, e Guattari de Iansã, fogo da paixão e do raio, da velocidade criadora espacial e temporalmente ilimitada), desconsiderando o aspecto Yin das coisas, feminino, acolhedor, vazio e mais íntimo. Ao integrarmos, como fazem os orientais no taoísmo e no budismo esses duplos aspectos ganhamos um centro sim, o Coração, que por certo não é um órgão no sentido da medicina alopática ocidental, mas pode ser um “órgão” no sentido da Acupuntura Tradicional Chinesa, ou seja, um organizador de fluxos energéticos no seu próprio meridiano e como “rei” no corpo em geral. Este Coração tem a capacidade de se relacionar com os fluxos compassivos e amorosos do universo inteiro, na prática meditativa da Vacuidade. 

Deleuze e Guattari, apesar dos aspectos africanos da sua filosofia, ficam eurodescendentes, ao desconhecerem o mais importante de todos os devires, que não é o “devir-mulher” como afirmam após Proust, nem o “devir-imperceptível”, mas bem, o “devir-vacuidade”. Este devir, o devir-vacuidade, é a prática consciente do elo entre todos os seres sem exceção. A sociopoética entra nessa lógica como prática científica e filosófica, pois, para compreender profundamente o outro no grupo-pesquisador, e intuir direto o devir-filósofo no qual estou imerso como membro do grupo-pesquisador, tenho de me esvaziar e me desapegar (das minhas crenças, do meu ego, dos meus medos e expectativas etc.). 

Além disso, ao olharmos com cuidado a origem desse conceito de CsO na obra de Antonin Artaud, percebemos que vem da sua experimentação do peiote com os indígenas Tarahumara do México, no ano de 1937. As plantas de poder indígenas proporcionam o que chamei de “ÁICAÍRQ”, ou seja, Atenção/Afeto-Intensificação-Caotização-Ampliação-Integração/Inclusão-Recolhimento-Quietude da Consciência, abrindo-a para o Amor cósmico. O Recolhimento e a Quietude são a consequência dessa entrega total ao universo, após caotização da mente e do ego. Existe uma epistemologia revolucionária, instituinte e contracolonial nas plantas de poder indígenas.

Pesquisas em andamento tecem a interculturalidade dialógica entre as epistemologias indígenas e acadêmicas: quando acabar o momento sociopoético da pesquisa, é só colocar em dialogicidade o pensamento do grupo-pesquisador com os teóricos acadêmicos de referência do/a facilitador/a da pesquisa, em seu mestrado, doutorado etc. para que tenhamos uma excelente pesquisa acadêmica.

Por enquanto, vamos seguir o passo a passo de uma pesquisa sociopoética realizada com crianças da cidade.

Como opera a sociopoética? (Shara Jane Costa Adad)

A proposta é mostrar uma pesquisa sociopoética[9]. Desde 2000, produzi muitas pesquisas, tanto como pesquisadora de crianças e jovens quanto como orientadora. Escolhemos uma pesquisa de 2008 encomendada por uma Casa que atendia 124 crianças e adolescentes. do sexo feminino, sendo a maioria afrodescendente, vitimizadas pelas violências: negligência, abandono, pobreza, drogas, prostituição, racismo, misoginia... Apresentamos aqui a parte desenvolvida com as crianças, destacando os resultados e as problemáticas que permeiam os confetos, mostrando que as violências continuam atuais e emergenciais. 

A pesquisa mobilizou questões sobre o corpo que as crianças ajudaram a problematizar, já que crianças pensam: “Como a criança da Casa pensa o seu corpo? Quantos corpos cada corpo criança carrega dentro de si? Quanto pode o corpo criança? Como pensar novas maneiras de problematizar esse corpo?” 

A Sociopoética utiliza a arte para produção de conceitos heterogêneos, polifônicos, polissêmicos, metafóricos e mesmo inusitados sobre um tema gerador. O grupo-pesquisador era composto por mim, facilitadora e por 20 crianças, as copesquisadoras.

Fizemos 4 oficinas: de negociação da pesquisa e de produção de dados, com duração de 4 horas e 2 oficinas de contra-análise, a qual permitiu às copesquisadoras conhecerem e se contraporem às nossas hipóteses oriundas da leitura dos dados produzidos. Neste texto, nos reportamos à produção de dados referente a técnica “O Corpo Mutante”: apresento os confetos e as problemáticas significativas para as crianças. Aqui os confetos identificados são mais individuais que coletivos, por causa do aspecto muito pessoal do corpo próprio, mas se ampliaram até o grupo na contra-análise.

O momento de negociação da pesquisa foi de sensibilização das crianças através de brincadeiras, relaxamento, fantoches e conversas no intuito de ampliar a percepção dos seus corpos, motivá-las para a pesquisa, ressaltando o tema gerador, a importância de sua participação enquanto copesquisadoras e a formação do grupo-pesquisador. Foi também o espaço para a escolha de pseudônimos, para preservar a privacidade. Seguem algumas fotos:

Iniciei a oficina de produção de dados com o relaxamento e a viagem imaginária ao corpo mutante, adotando um roteiro que levava as crianças dentro de uma bolha flutuando por espaços da Casa e fora dela. Em determinado momento, a bolha furava e caia num buraco que levava a criança em outro mundo, com outro corpo: um “corpo mutante”. 

A produção dos dados da viagem foi na forma de desenhos e modelagem. Após o relaxamento, cada criança-copesquisadora produziu o desenho da sua viagem e modelou seu mutante. Em seguida, fez seu relato oral da viagem realizada, fazendo livres associações entre o desenho e o tema gerador corpo. Isto foi gravado e analisado. Eis alguns dos 20 desenhos dos corpos mutantes produzidos pelas crianças.

Após a produção dos dados, veio o momento da análise e contra-análise. Ocorreram a produção de sentidos, de acontecimentos ou conceitos e, ao mesmo tempo, a produção de subjetividade: pensar e ser são uma mesma coisa. E como o conceito é um acontecimento, não pode existir sem ser perpassado de afetos que não são emoções individuais, nem sentimentos, mas intensidades que percorrem os corpos; os “confetos”. Os afetos não só existem: são o motor da criação. 

Partindo do estudo transversal e da contra-análise dos confetos e de suas problemáticas, o pensamento das crianças se apresentou nas seguintes dimensões: os medos da criança em situações difíceis; que pode o corpo da criança diante dessas situações e as relações com a família.

Os “medos da criança diante das situações difíceis” que atravessam seu corpo, de tal modo que o constitui como um corpo culturalmente marcado pelo medo. O medo habita o corpo em múltiplas dimensões: o medo de ser sequestrada e sair de perto da família, o medo do sonho se realizar, de ser estuprada e pegada, de sair da Casa, de bichos diversos, de coisas imateriais, de dormir sozinha, dos ladrões, da polícia, de levar um tiro.

Um dos medos foi o do sonho se realizar. De que sonhos essas crianças falam? Seriam sonhos aflitivos que anunciam situações de pesadelo? Agitação ou opressão durante o sono? Conectando este medo de sonhar com os demais medos da criança: ser estuprada, ser pega, ser sequestrada e ficar distante da mãe e da família, percebo que estes medos realçam os desejos das crianças de viver situações positivas e potentes como outra vontade de viver, criar, amar, inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores.

Outro ponto diz respeito aos bichos diversos, em especial os bichos repugnantes e peçonhentos, como sapo, rato, cobra, mosquito da dengue, escorpião, monstros... É como se entre uma criança e seu cotidiano de medos se fizessem rizomas. É como se houvesse um devir para cada medo, um devir-medo rato, um devir-medo cobra, que funcionam por contágio num campo de batalha onde a criança aprende de modo singular a viver e conviver e, por vezes, a recusar cada um dos sentimentos estranhos pelo qual ela passa.

Como é o caso do paradoxo presente no confeto “medo-cobra” que é o medo que despotencializa a criança ao imobilizar o seu corpo, silenciar, não fazer nada e ficar quieta, recolhida. E ao mesmo tempo, de modo surpreendente, esta criança se metamorfoseia em “mutante-mulher-da-cobra” que potencializa seu corpo e produz um devir que lhe dá poderes, desconstruindo seus medos, incorporando-os ao torná-los seu próprio aliado diante das dificuldades. Vejamos:

Eu imaginei que eu era um mutante eu ia devagarzinho, via uma bola e pulei, ela espocou, cai no buraco. E o buraco era fundo e vi uma cobra. Quando eu vi a cobra eu não gritava, porque era muito perigoso, ai eu fiquei muito tempo, ai eu fui me acostumando com a cobra. Eu voltei pra minha casa, fiquei com a cobra, dormia com ela. Eu não tinha medo da cobra porque ela se acostumou comigo. Antes de me transformar num mutante eu pensava que ela ia me morder, mas eu me transformei na Mulher da Cobra. Ela tem poderes e pode soltar a cobra se ela tiver raiva de alguém. Por exemplo, eu falo: “Vai picar ela”, ela vai. A cobra me ajuda a passar a dificuldade. 

Não podemos imaginar que as crianças da Casa passaram pelos mesmos problemas, pois cada uma, em si, é um povoamento. Multiplicidades de problemas que envolvem desde os sonhos à materialidade de um estupro. A questão é perceber que a criança vive essas situações entre a imaginação e a linguagem instituída. Falar de seus medos é falar de um campo entre termos heterogêneos, por exemplo, falam ao mesmo tempo do medo dos ladrões e da polícia, que co-existem no imaginário infantil.

As crianças resistem e problematizam os medos, trazendo elementos para pensar “que pode o corpo da criança diante das situações difíceis”: na relação com os seus medos elas apontam uma série de prescrições, por exemplo:  de como devem fazer para se livrar do medo e defender seu corpo, utilizando os poderes que têm. Assim, com o confeto “mutante-Vampiro-Vavá”, a criança enfrenta várias pessoas perigosas e chupa seu sangue para se defender. 

O grupo-pesquisador produz o confeto “mutante-invisível” que é o corpo invisível das crianças a fim de procurar solução para sair das situações perigosas - ao se transformar num corpo poderoso e invisível. Mesmo não querendo ser invisível, se for necessário a criança usa desse poder: por não gostar de brigar.

Essas formas de enfrentamento do medo e de defesa do corpo são astúcias das crianças que não se mostram frágeis e dóceis diante das situações de assujeitamento que envolvem o medo. É produzido um corpo que vibra, na medida em que o perigo ou a dor realçam a capacidade vigorosa de resistir e recusar as situações difíceis por meio de gritos. Tudo é vida, apesar do perigo e da dor.

“A relação com a família” é a terceira linha de problematização, sobretudo com o pai. Assim foi criado o confeto “mutante-menina-voadora” a partir de um corpo com asas brancas e fortes. E o poder dela é ficar voando longe das brigas e dos pais. Vejamos:

Ela caiu dentro do buraco em outro mundo. Ela sonhava em ter asas para ir do mundo que ela estava para outro mundo. Porque no mundo em que ela estava era ruim, cheio de brigas. Ela achou bom ter asas para ter um corpo bom. Agora só andava voando e sentia amor, felicidade. Agora ia ser feliz no corpo mutante-menina-voadora, ela ia voar.

O corpo marcado e sofrido pelos maus tratos dos pais é potencializado com desejos sensíveis capazes de propiciar a criação do devir-menina-com-asas que ampliou os contornos do corpo da criança. Como diz na contra-análise: “Ela gostou muito das asas porque não era mais maltratada, ela não pede mais ajuda, porque ela não sofre mais.” O devir “menina-com-asas” é um fluxo que tira a criança da imobilidade diante da opressão vivida na casa dos pais, pois a puxa em dois sentidos ao mesmo tempo: ela muda o corpo e sai de casa.

Na contra-análise, as copesquisadoras completaram essas ideias. O corpo potencializado ganhou forças para sair da casa dos pais e ir para a casa que comprou. 

Disseram ainda que dessa transformação a criança “mudou o cabelo, pintou, cortou, se arrumou, colocou um vestido. O corpo dela na casa nova ficou bonito, experiente.” É como se mudar o corpo fosse trocar de pele, desmanchar as marcas da violência nele inscritas. Com isso, o corpo fica bom: ao viver longe dos seus agressores ganha segurança, podendo relaxar e voar. 

Uma alternativa para sair do sofrimento na casa dos pais é o casamento, que significa também a conquista da segurança na medida em que tem alguém para lhe cuidar. Na contra-análise, disseram:

Ela tem o marido dela, ela casou, depois que ela se casou, ela ficou muito mais feliz porque ela podia voar e tinha a casa dela. A casa dela é rosa, bonita, cheia de flores, cheia de amigas, de jardins, de cerveja, de cachaça alemã. Ela mora numa gaiola, mas ela pode sair qualquer hora, aí o marido dela coloca ela lá no altar. Ela se sentiu segura.

A criança para dar consistência a seu pensamento cria o confeto de “casa-gaiola”, ao mesmo tempo lugar de segurança e de liberdade. O confeto “casa-gaiola” cria um devir-gaiola: este espaço mostra que a casa é lugar de segurança e liberdade, paradoxal (o grupo-pesquisador não percebeu que subvertia o sentido comum de “gaiola”, todavia presente no inconsciente como “casamento-gaiola”: lindo paradoxo problematizante – fonte do pensamento segundo Deleuze[10] - do aprisionamento libertador!). 

A criança passa a ter outro status nesta casa-gaiola que é a do altar, tornando-se venerada pelo marido. Estas ideias realçam os paradoxos pelos quais as crianças vivem, na medida em que ao afirmar que o marido a coloca no altar, ela acaba por mostrar que o medo de ser tocada de algum modo permanece. Embora esta “casa-gaiola” seja diferente da casa de maus-tratos do seu pai, na nova casa a figura masculina deste lugar, o seu marido, coloca-a no altar, tornando-a um ser intocável, idolatrada por um amor incondicional e de reconhecimento de sua importância enquanto criança (mas que fica controlador, diz o inconsciente...).

As crianças criaram ideias diferentes do confeto “mutante-menina-voadora” transformando-se no confeto “mutante-Analá”: um corpo com asas permite voar no céu e resolver os conflitos no âmbito familiar com o poder da água de parar as tempestades, furiosas, pois são o corpo, mesmo:

Eu me transformei numa mutante que lê o futuro e tem o poder da água. Ela é do bem e não maltrata as pessoas. Ela tem o poder de parar as tempestades, aquelas furiosas. A viagem dela foi ruim [...] porque ela caiu dentro do buraco e foi bom porque depois, ela se transformou num mutante e foi para outro mundo cheio de coisas bonitas. Ela se sentia triste porque achava que os pais não gostavam dela, mas depois que ela caiu no buraco eles gostaram dela, porque ela se transformou numa mutante, a Analá. O corpo Analá sentiu que o corpo dela agora tem asas e pode voar no céu.

Na contra-análise, ampliaram estas ideias ao responderam à pergunta sobre os motivos pelos quais os pais só gostaram dela depois da transformação em corpo mutante Analá. Algumas crianças responderam que os pais passaram a gostar dela porque:

“Ela sumiu e o pai dela ficou preocupado com ela”. “Ela resolveu fugir, mas o pai começou a gostar dela porque ela tinha asas”. “Ela fugiu para longe do pai, aí, o pai começou a gostar dela porque ela voltou”. “Ela dá mais alegria para eles”. “Ela ensinou que não podia bater nos filhos”. “Ficaram mais alegres, porque ela virou uma mutante muito importante e voadora”.

Sumir e/ou fugir é uma tática da criança para atingir seu intento: que o pai passe a gostar dela. O amor do pai é reconciliado com a atitude de desaparecer, chamando a atenção para si com este ato. É visível a dor que envolve este corpo: o sofrimento está entre a criança que ama e a pessoa amada. É uma lesão no laço íntimo com o outro. O outro do amor – seus desejos e suas demandas - inscreve-se no corpo da criança. Esse outro – no caso o pai – é o outro do amor, da intimidade e da dependência, cujo desejo a criança deseja, inscrevendo-se no seu corpo. É motivada por este desejo que a criança foge e retorna para casa com o corpo modificado. Ela não é mais a mesma, pois “virou uma mutante muito importante e voadora.” E esta mudança dá alegria aos pais porque ela se torna importante para os outros. E isto modifica os pais que passam a ter outras atitudes, reconhecendo-a também como importante. Com isso, ela adquire um poder a ponto de ensinar para o pai como deve lidar com os filhos, realçando sua importância e um lugar de destaque na família. E toda essa mudança gera, inclusive, inveja.” Na contra-análise, disseram: “Eles têm inveja dela porque ela tem asas e eles não. O pai dela gosta dela, mas tem inveja.” É como se a partir do reconhecimento da importância da criança, de seu poder e de sua imagem pelos outros, em especial pelos pais, se revertessem os papéis formais, tornando-os, ao mesmo tempo, dependentes e invejosos de seu novo corpo de criança.

A contra-análise permitiu evidenciar que:

O pai dela não gostava de bater nela, mas ela deixava o pai dela triste porque ela batia nos outros. Ela era do mal, ela fazia danação, não ajudava a mãe dela, fazia danação na rua. Depois que caiu no buraco, os pais dela começaram a gostar dela porque ela só tinha bondade no coração. Ela mudou o corpo dela, ela teve amor no coração, porque ela virou um mutante do bem. Ela não maltratava os amigos dela, não xingava, não batia. Ela ficou poderosa, ela protegia o pai dela da maldade.

Mudar o corpo para o bem. E o que é o bem? É deixar de fazer danação em casa e na rua, pois não se comportava como devia. As crianças, inclusive, justificam a atitude agressiva do pai! Estas ideias ressaltam que as crianças copesquisadoras se mostram culpadas pelos seus atos e não responsabilizam seus pais pelos atos agressivos que realizam, pois estas atribuem somente a si os rótulos negativos de “danadas”, “sem bondade” e “do mal”. 

Estas ideias mostram que precisamos urgentemente chamar pais, sociedade e Estado à responsabilidade pelas crianças, porque, conforme artigo 227 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 2005).

O cumprimento do que determina este artigo evitará que as crianças sejam culpabilizadas por atos que não são de sua responsabilidade, evitando, assim, que elas absorvam a culpa e atribuam a si rótulos negativos. A culpabilização faz com que o nosso próprio direito à existência desabe, se passarmos a acreditar que não somos possíveis do jeito que somos. Diante disto, aprendemos a calar e interiorizar esses valores, concebendo-os como verdadeiros. Mas o Personagem conceitual “a mutante” que se expressou no grupo-pesquisador evidencia as potências de resistência e criatividade das crianças.

Conclusão

Diante do exposto, observo que as co-pesquisadoras produziram ideias heterogêneas, criando conceitos polifônicos devido à simultaneidade de composição feita com várias vozes; polissêmicos, pois contêm múltiplos e heterogêneos sentidos e a-finitos na medida em que não estão fechados e acabados, já que foram ampliados, modificados e transformados durante o processo analítico dos dados.

Nesse caso, não pretendi com esta pesquisa dar respostas ou deixar uma palavra final sobre o que é o corpo; não quis sintetizar o que foi produzido pelas copesquisadoras, nem generalizar ou homogeneizar as ideias levantadas. Considerando que este é mais um momento de nossas percepções, mais uma voz nessa construção.

A importância dessa investigação foi possibilitar o aflorar dos problemas que mobilizavam as adolescentes acerca do corpo, facilitando a criação de confetos novos sobre o referido tema. Além disso, permitiu conhecermos de perto as ideias e os conceitos sobre o corpo e, nesse caso, possibilita aos educadores e colaboradores da Casa um conhecimento próximo e atuante junto às crianças com as quais convivem e atuam. A pesquisa foi decolonizadora da academia, pois quem criou o conhecimento foram meninas negras de periferia. 

Bibliográfia

Adad, S. J. H. C., O pensamento de crianças vitimizadas pelas violências sobre o corpo: uma pesquisa sociopoética, in “Cordis: revista eletrônica de História Social da Cidade”, n. 7, 2011, url: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10385

Ballestrin, Luciana, Americana Latina e o Giro Decolonial, in “Revista Brasileira de Ciência Política”, n. 11, 2013, url: shorturl.at/ceh58.

Deleuze G., Logique du sens, Minuit, Paris 1969.

Deleuze G. e Guattari F., Mille Plateaux, Minuit, Paris 1980.

Deleuze G. e Guattari F., O que é Filosofia, Ed. 34, Rio de Janeiro 1992.

Gauthier J., O oco do vento – metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais, CRV, Curitiba 2012.

Santos, A. B. dos, Colonização, quilombos: modos e significações, Ayô, Brasília 2019.

Santos, B. de S. e Meneses, M. P., Epistemologias do Sul, Cortez, São Paulo 2010. 

Viveiros de Castro E., Metafísicas canibais, Ubu Editora, São Paulo 2018.

 

Jacques Gauthier. Professor aposentado, doutor em Educação, mestre em Filosofia, em Linguística e em Ciências Políticas. Poeta e filósofo, criador da sociopoética. Formado no Teatro do Oprimido, em Análise Institucional e Acupuntura Tradicional Chinesa. Ogã do Candomblé “Angola”, iniciado no xamanismo tolteca e no budismo tibetano de tradição Kagyu. E-mail: jacques.jupaty@gmail.com

Shara Jane Holanda Costa Adad.  Cientista Social. Doutora em Educação. Sociopoeta. Professora de Sociologia e Antropologia da Educação, no Centro de Ciências da Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Coordena o Núcleo de Pesquisa e Estudos “Educação, Gênero e Cidadania” (NEPEGECI) e o Observatório das Juventudes e Violências na Escola (OBJUVE), da UFPI. E-mail: shara_pi@hotmail.com.

 

[1] B. de S. Santos, M. P. Meneses, Epistemologias do Sul, Cortez, São Paulo 2010.

[2] L. Ballestrin, Americana Latina e o Giro Decolonial, in “Revista Brasileira de Ciência Política”, n. 11, 2013, url: shorturl.at/ceh58.

[3] A. B. dos Santos, Colonização, quilombos: modos e significações, Ayô, Brasília 2019.

[4] J. Gauthier, O oco do vento – metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais, CRV, Curitiba 2012.

[5] O “confeto” é mistura de conceito e afeto, o “intuiceto”, de conceito e intuição. Este surge particularmente quando o facilitador tem um insight no estudo dos dados.

[6] Sobre essas noções, ver G. Deleuze, F. Guattari, O que é Filosofia, Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.

[7] G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux, Minuit, Paris 1980.

[8] Viveiros de Castro, Metafísicas canibais, Ubu Editora, São Paulo 2018.

[9] Ver S. J. H. C. Adad, O pensamento de crianças vitimizadas pelas violências sobre o corpo: uma pesquisa sociopoética, in “Cordis: revista eletrônica de História Social da Cidade”, n. 7, 2011, url: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10385

[10] Deleuze, Logique du sens, Minuit, Paris 1969.